Friday Jun 14, 2024

A função dos inimputáveis. Uma conversa com Victor Gonçalves

“Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista”, dizia há dias Jorge de Sena, um dos últimos que arrancou a voz dos sepulcros e do nosso conformismo para dizer alguma coisa num discurso do 10 de Junho que nos fizesse ferver o sangue. O que é próprio de um bando de filhos da puta é este “desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião.” Não venham cá erguer castelos de areia e falar de quintos impérios bafientos, tudo o que temos diante de nós e que se publicita enquanto espaço literário ou até, de forma mais abrangente, como campo cultural, são repetições do de sempre, modos de refocilar na pasmaceira, nesse rigorismo das fórmulas que melhor se reproduzem, se perpetuam, deixando uma margem ínfima para que algo de outra ordem possa despontar e reclamar posições, fazer ouvir uma outra música. O destino de todos os gestos vigorosos no campo artístico deveria ser o de contrariar a sufocação, produzindo uma dissidência. O verdadeiro apelo que lança o poeta passa por multiplicar os caminhos, defender a diferença de uma poesia que “não se quer mero exercício literário, mas aventura em que a vida se joga por inteiro” (Cesariny). Hoje começamos por não saber nada de mais profundo sobre nós, não sabemos quantos somos, nem o que nos liga aos que vieram antes. Vai triunfando uma forma de psicose em que cada um investe tudo em si mesmo apenas para se dar conta de que, com isso, apenas colabora num regime de passividade, cada um encerrado como uma larva no casulo, prometendo-se metamorfoses radiantes, mas que se fica por isso mesmo, um eterno desfiar de ilusões inconsequentes, uma distracção em linha com a total ausência de reacções perante a guerra que tomou conta de todos os aspectos da vida em sociedade, desse regime de competição que, curiosamente, produz uma forma massiva de “desvirilização” através da qual os homens se transformam numa espécie de “ovelhas conscientes e resignadas ao abate” (Hollier). Perante este quadro, há uma urgência de recomposição num momento em que tudo serve para nos convencer que não nos é possível afectar uma mudança radical das circunstâncias em que vivemos. Vemos como tudo aquilo que se programa, todas as iniciativas e propostas, servem para arruinar qualquer ímpeto colectivo, qualquer comunidade, separando os grupos dos meios de existência e dos saberes a que estão ligados. Assim, damo-nos conta de que é essa a motivação política que está presente em todos os contextos, contagiando as reles formas de agitação que são próprias de uma cultura reificada, sempre disposta a emular a ofensiva da mediação mercantil que se impõe sobre todas as relações. Para sair disto é necessária uma indisposição de todo o tamanho. Para destruir essa forma de reprodução de si mesmo, os discursos que excitam os consumos e nos oferecem essa versão aguada e impotente das antigas mitologias, esse culto de umas celebridades patéticas e indistinguíveis umas das outras. É preciso revirar o consumo, acicatar um ódio nessa vertigem para a qual aponta Deleuze: “Basta que o ódio seja suficientemente vivo para que dele se possa extrair alguma coisa, uma grande alegria, não de ambivalência, não a alegria de odiar, mas a alegria de querer destruir o que mutila a vida.” Também Michaux não dispensava esse modo de se relacionar que cresce a partir de uma repulsa e nos diz tanto sobre o outro como sobre nós, e falava nessa forma de repúdio que afina a insurreição começada cá dentro: “Preciso de ódio, e inveja, é a minha saúde./ Preciso de uma grande cidade./ Um grande consumo de inveja.” Podemos também seguir de perto e exclamativamente Mário de Andrade e a sua ode ao burguês: “Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!/ Oh! purée de batatas morais!/ Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!/ Ódio aos temperamentos regulares!/ Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!/ Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!/ Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,/ sempiternamente as mesmices convencionais! (…) Todos para a Central do meu rancor inebriante/ Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!/ Morte ao burguês de giolhos,/ cheirando religião e que não crê em Deus!/ Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!/ Ódio fundamento, sem perdão!” Neste episódio, e para nos desvirarmos um tanto dos itinerários e leituras onde já fomos escavando as nossas trincheiras, pedimos apoio a esse mestre de armas de longuíssimo alcance, sobretudo morteiros filosofantes. Victor Gonçalves é desses que vão para o espelho e em vez de gritarem três vezes Candyman, gritam Nitzsche, e passam os dias exaltados, assombrados, fervilhantes num debate sem fim. Diz-se uma espécie de “filósofo jornalista”, pois gosta dos dias, dessa bulha, de dar resposta, não levar tudo para sufocar em casa, e além do ensino de adolescentes, anda aí com os filósofos pela mão, como um bando de meninos diabólicos, a desassossegar os bairros e virar a lata contemporânea.

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