
7 days ago
Em nome dos bárbaros. Com o Changuito no centésimo episódio
Já andamos nisto há cem episódios, a tentar desenhar essa periferia monstruosa em torno de uma cultura que se excede de tão recomendável, debitando exemplos, listas de autores e obras, “ideias flutuantes”, enaltecendo-se na sua acumulação esgotante, com esse enredo esfalfado em que as mesmas personagens inofensivas aperfeiçoam os gestos de mármore, com os seus conhecimentos fragmentados, desprovidos de um eixo, de um sentido de unidade e de um desejo de acção. Vemos por aí tudo tão mal digerido, sendo tão raros aqueles que trabalham a qualidade da sua culpa, quando um embate já vai exigindo outra pele, uma outra resolução das mentes, que por estes dias parecem cada vez mais baratas, mais submissas. Incapazes de urdir esses ventos que levam o fruto e a casca, estende-se uma terra cada vez mais longe de qualquer nexo profundo, onde se deixam embalar por contos infantis. Talvez só se possa produzir alguma perturbação cercando a cidadela, reunindo as forças de tudo o que esta procura expulsar para fora dos seus muros. Nem tudo pode desapontar, e se os insectos intemporais que mergulham o seu ferrão na carne destes dias nos dizem que o mundo está a dissipar-se a uma velocidade atroz, resta estudar os elementos antigos das grandes tradições. “Outros escrevam biografias/ passo a passo e dia a dia/ como se exumando o passado/ renascessem os biografados/ seguidos de extensa bibliografia// Estas, não: são vidas recuperadas/ por golpes fundos e agudos/ sem intenção de mostrar tudo,/ só querendo, no fim das facetas,/ revelar vidas lapidadas/ pela visão de um poeta”, eis o que anota Domingos Pellegrini a propósito do volume a que Leminski deu o singelo título “Vida”, a partir de quatro biografias (Trotski, Bashô, Cruz e Sousa e Jesus) que lhe fornecem os caracteres de uma radicalização em que é possível investigar como a vida poderia ou deveria ser, caso ultimasse esse sentido de “uma política da arte como experiência”. Jean Baudrillard ajuda-nos a compreender o que possa ser uma estratégia capaz de separar todas as letras do vazio, de virarmos a nosso favor o elemento de desagregação num tempo em que tudo conspira para nos separar. “Cansadas da dialéctica do sentido, as coisas encontraram um meio para lhe escapar: o de proliferarem até ao infinito, o de se potencializarem, o de se sobreporem à sua essência, numa escalada até aos extremos, numa obscenidade que lhes servirá, doravante, de finalidade imanente, e de razão insensata. Nada nos impede de pensarmos que é possível obter os mesmos efeitos numa ordem inversa – outra insensatez, também ela vitoriosa. A insensatez é vitoriosa em todos os sentidos – este é o próprio sentido do Mal. O universo não é dialéctico – está condenado aos extremos, não ao equilíbrio. Condenado ao antagonismo radical, não à reconciliação nem à síntese. Este é também o princípio do Mal, e exprime-se no génio maléfico do objecto, exprime-se na forma extática do objecto puro, na sua estratégia de vitória sobre o sujeito. Obteremos formas subtis de radicalização das qualidades secretas, e combateremos a obscenidade com as suas próprias armas. Ao mais verdadeiro do que o verdadeiro, oporemos o mais falso do que o falso. Não oporemos o belo e o feio, procuraremos o mais feio do que o feio: o monstruoso. (…) Nesta escalada até aos extremos, será talvez necessário opô-los radicalmente, mas será igualmente necessário juntar os efeitos da obscenidade e os efeitos da sedução. Procuraremos algo de mais rápido do que a comunicação: o desafio, o duelo.” Para este episódio fomos ao último reduto, ali onde a cultura se vê forçada a fazer o caminho todo do princípio do mundo até ao fim, sem pressas, tornando claro como o real exige paciência. Parece haver uma inversão, no sentido em que, hoje, começamos sempre pelo fim, e o mais difícil é recuperar as raízes. Mas nesse antro tão pouco recomendável, o habitual regime do beatério cultural aparece-nos cercado por todos os lados, e aquilo que o ameaça é que provoca em nós calafrios, abrindo-se num enredo de possibilidades clamorosas. Como assinala Louisa Yousfi, “a barbárie é uma vitalidade primitiva que permite a escrita verdadeira, o gesto puro, a poesia”. Pedimos ao minotauro que nos abrisse a porta do seu labirinto. A Poesia Incompleta persiste nesta cidade de muralhas derruídas como um castelo e uma latrina, um laboratório para os exercícios de expansão e contracção das virtualidades que a poesia enuncia e aprofunda, dessa lei da relatividade mais generosa, aplicada aos sujeitos. Talvez seja a última das moradas com a porta irrestritamente aberta para a rua onde se dá em directo essa operação de volte-face em que o culto leva a melhor e ainda troça e injuria as formas do espectáculo, e isto com um Ahab ao leme, o maior tirano e um dos raros insurrectos, encarnados ambos numa mesma figura trágica, comovente, mas com um humor que é uma verdadeira devastação inteligente, uma figura admiravelmente esquizofrénica, que dirige uma escavação arqueológica e um instituto de etnografia a partir desses projectos que quase todos sonham (ou dizem que sonham) e que quase sem excepção têm a lucidez de não levar por diante, para não submeterem os seus sonhos a uma decepção fatal. Por isso, aquilo não é uma livraria, antes uma interminável operação de coração aberto a um dos últimos loucos sísmicos não trancado nalgum museu ou a definhar para benefício da nossa distracção turística num zoológico.
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