Tuesday Apr 18, 2023

O foco de luz no último estertor

Ganhámos os três, e bem podem dizer que já andamos a pedi-las. Porta atrás, porta pelo corredor, metemos a cabeça nos quartos e damos um berro, desenhamos uma gaifona e esperamos cá fora, diante da serenata dos cães da vizinhança, batendo com os nós dos dedos nas paredes a chamar para virem dançar as amiguinhas, depois pisamo-las todas. Na verdade, o que mais queremos é arrepiar caminho. O Musil está para ali a resmonear que "o mundo dos que escrevem (...) está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância".
Temos de refazer as nossas cidades, começar por uma mesa, uma conversa noite fora. Ganhar ânimo, retirar o mundo da sua dormência. Apalpá-lo, mexer-lhe nas partes. O Musil continua a puxar-nos a manga, quer ainda acrescentar que “hoje, numa época em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatães usam as mesmas fórmulas com mínimas diferenças, cujo percurso nenhuma pessoa ocupada tem tempo de investigar, num tempo em que as redacções dos jornais são constantemente incomodadas por gente que acha que é um génio, é muito difícil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pés diante da porta da redacção são suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da «polis»." Uma vez que não temos já direito aos cafés, às nossas margens divagantes, façamos aqui um enredo de escutas para ver se afinamos os instrumentos, treinando o coração para os sobressaltos que se avizinham.


Errata:
Às tantas, Stephen Jay Gould, um biólogo evolucionista e popular escritor de divulgação científica, faz aqui um cameo, completamente a despropósito. Na verdade, o título que buscava era "O Segredo de Joe Gould", de Joseph Mitchell, editado por cá pela Dom Quixote.

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