4 days ago
Para acabar de vez com a boa-consciência do público. Uma conversa com Margarida David Cardoso
Para 2025 não temos grandes planos, apenas a insistência, os gestos que exigem ser lidos na continuação de um tumulto, prosseguimos os esforços, os erros de que ainda somos capazes, com aquela liberdade de já tudo ter sido dito, estando tudo ainda por fazer. Sem nenhum compromisso com a inocência, usamos um relógio morto no pulso, e se o tempo se decompõe, como esse inodoro cadáver, o tique taque soa a uma risada. Só agora começámos a perceber o que é isso da História, como esta faz de nós os seus objectos e, no entanto, nunca nos redime. A sensação de culpa ainda é a glória a que aspiramos. A memória começa a funcionar muito tarde na vida, e apenas para ligar os vestígios de um crime tão repetido, por isso precisamos de uma coisa e do seu contrário para poder falar, sobretudo para escrever e nos movermos entre os diferentes papéis. Também nós nos ouvimos, e é mesmo esse movimento de estranheza aquilo que melhor se aproveita. Dizemos coisas que vão para além do que sabemos, e por isso mesmo nos é tão difícil sermos muito detalhados. É isso o que nos agrada, o fazer companhia a uma outra coisa, sentir como nós próprios invadimos as nossas vidas, aceitamos o risco de se ser e não ser uma coisa, estar do nosso lado e contra nós. Deve ser um risco isto, havendo a possibilidade sempre de nos denunciarmos, de requerermos a nossa condenação. Muitos hoje só conseguem ser solidários consigo mesmos, e isso faz deles os crápulas que se sabe. Mas parece-nos evidente que devemos ser capazes de fazer aquele gesto de renúncia que ensinou Kafka, ao lembrar que no confronto entre nós e o mundo, melhor será que sejamos nós a perecer e que o mundo ofereça a sua esperança a outros. Aquilo que se escreve pertence ao sentido que alguém dará ao texto no momento em que este se torne urgente, e apenas em função disso este terá algum futuro ou não terá nada. Um dos problemas da escrita nos nossos dias, do seu excesso, é o ser notório que é feita com um propósito qualquer, imediato, são coisas que redigem uns tipos sentados, sem oferecer margem ao acaso, a esse esparso ditado… Falta-nos aquele sentido corporal do teatro, uma poética cheia de ardor, que exija os seus corpos, actores que se esquecem de si mesmos e vão até ao limite e ao pavor das circunstâncias dramáticas, sem depois vir receber aplausos nem pedir desculpas ao público. Em vez desses que no final se mostram à boca de cena, acolhendo o louvor, seria necessária uma unidade de tal forma profunda com o sentido que o público tivesse de se defender dos actores, que caíriam sobre ele por ter vindo ali em busca de uma continuação do mesmo enredo e artifício que faz da vida esta coisa sem relação com nada. Abusou-se das convenções, e hoje toma-se as formas por isso mesmo, o hábito desolador do que se vai repetindo numa ênfase cada vez mais estéril. O espectáculo dissociou tudo, e o sentido já não impele a acção. Müller diz-nos às tantas estar absolutamente convencido de que o fim da literatura vem com esta resistência ao teatro, esse regime suspensivo em que se desfiam todas as hipóteses porque não se admite que a vida possa abandonar a sua falta de razão por essa urgência que compele os corpos. O nosso desânimo parte desta fractura, o facto de toda a criação se ter submetido aos ditames da produção, e desde os jornais aos projectos editoriais, abandonou-se todo o vigor, o próprio efeito de um gesto continuado, insistente, pondo-se as obras ao serviço das coisas como são em lugar de contestarem e desenvolverem uma perspectiva desejante. O importante nos escritores significativos era a forma como surgiam como intrusos gerando alguma perturbação. O seu debate com a forma residia nesse efeito de transtorno, e só assim podiam considerar-se poetas ou artistas, actores ou o quer que seja que não se viciou nem está rendido à mera repetição, às nauseantes representações que apenas servem para dilatar o espaço entre aquilo que somos e aquilo que gostaríamos de ser. Para nos servirmos de alguns exemplos, Müller lembra que Artaud nunca partiu de uma separação entre o público e a cena, mas que tentou restituir ao teatro uma função vital, que, na generalidade, este há muito tempo atraiçoou. Não há nada mais amestrado e inconsequente do que este género de actor que admite ser transformado numa celebridade, para dar corda às ilusões de uma audiência que só quer ser reconfortada no seu imobilismo, enquanto alimenta esses afectos à distância. E Müller vinca como também Brecht entendia que a força de uma obra teatral não deve ser aferida pela dramaturgia, mas com a realidade a que se refere. As instâncias de mediação começam por só se referir à realidade através dessa reprodução de imagens e lugares comuns que degradam qualquer possibilidade de que se pense o mundo enquanto uma composição unitária, em que há causas e efeitos, em que vibra em tudo um nexo contínuo. As representações que se dizem realistas começam por opor a matéria ao espírito, e assim condicionam de partida a nossa relação com aquilo que está constantemente a ser transformado pela nossa acção. E não há conspiração mais degradante do que a da impotência, desde logo porque desloca todo os efeitos para a esfera de uma sórdida minoria que se elege a si mesma contra os interesses de todos os outros. Assim, no contexto actual, as democracias conseguiram o que nenhum regime totalitário conseguiu: legitimar as piores formas de exploração fazendo com que a miséria de uns constituísse o tecto das aspirações dos demais. Actualmente, só os mais imbecis não reconhecem como as sociedades industriais modernas têm como eixo da sua ideologia e acção política reprimir a fantasia, instrumentalizá-la a favor dos seus fins e, assim, vulgarizá-la até se reconduzir inteiramente aos aspectos mais imediatos e mais sórdidos da realidade. Em vez de projectos, os homens passam a ser meros agentes viciosos, vítimas dos seus caprichos e apetites. Por esta razão, não pode haver um princípio de organização política, nem muito menos uma acção revolucionária, que passe ao lado dessa necessidade de mobilizar a fantasia. Brecht formulou-o desta maneira: haveria que possibilitar ao espectador que este pudesse a todo o momento desembrulhar aquilo a que é exposto em imagens alternativas, em processos alternativos. Que quando este se viesse diante de uma representação, quando escutasse um diálogo desenrolando-se desta ou daquela maneira, o espectador pudesse reimaginá-lo ou mesmo invertê-lo de forma a que fosse antes o diálogo que ele julga ser mais urgente ou desejável. Neste sentido, Müller rejeita as obras como coisas acabadas e que se dirigem à posteridade ou ao mundo contemporâneo, notando que esse efeito foi abolido no mesmo sentido em que deveria ser a propriedade privada dos meios de produção. "Num mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso", diz-nos Guy Debord, e, se a verdade e a mentira se tornaram reversíveis, se todos os factos estão sujeitos a deturpação, nunca como hoje foi tão decisivo que o jornalismo se submetesse a um profundo exame, de forma a repensar o seu papel e influência, as suas estratégias, a sua relação com o público, a pensar novas formas de subjectividade, capazes de resistência e de crítica, mas não nos moldes do individualismo clássico, liquidado pelo desenvolvimento do capitalismo tardio. Pois, "se o ‘indivíduo’ enquanto tal não é nenhuma substância eterna, mas sim uma forma histórica de subjectivação (hoje objectivamente destruída, mesmo que simultaneamente idolatrada pela ideologia do consumo e pela indústria cultural), isso, porém, não implica que devamos desistir da ideia de sujeitos capazes de resistência e liberdade", como vinca Jeanne Marie Gagnebin. Neste episódio e para levar mais longe estas indagações, convidámos Margarida David Cardoso, jornalista integrante do Fumaça, um projecto editorial marcado por uma relação comunitária, horizontal, e que representa bem esse espírito de inquietação e compromisso, aquele empenho dos que são capazes de dedicar-se quotidianamente ao esforço de promover as mudanças de perspectiva que trazem em si visões alternativas.
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