Friday Jun 02, 2023

”Um corpo sozinho é uma campa vertical”. Uma conversa com Vasco Gato

Cheira a sangue a mancha de vinho na toalha, e deve ser sinal de que a inteligência volta enfim a encarnar, a ter gestos largos, expansivos, a ver e tocar as formas diariamente. Depois de três anos de suspensão e de uma certa necrose social, está na altura de falarmos sobre o que (nos) aconteceu. Tentamos recuperar o sentido da proporção e da razão ardente para falar daquilo que nos foi proibido, de todo o clima de ameaça e recuperar o sal dos velhos itinerários, fazer o caminho entre as ruínas vivas num mundo de mortos em vida. Livres das medidas restritivas e dos constrangimentos ou até do fedor moralista da pandemia, podemos agora olhar em retrospectiva os dias em que nos vimos desfocados ao beber do ar esse horror sereno das máscaras que nos olhavam, faltando sempre um gosto a guerra. Vasco Gato foi dos poucos que acusou o pavor dessa forma de abandono, dessa alegre dissolução do espaço comum e dos rituais que nos ligam. "Um corpo só é possível num/ ritual de vários corpos", vincava nuns versos de um poema que, em finais de 2019, viria a mostrar-se desoladoramente premonitório. Hoje, buscamos de novo uma data viva, enfrentando o rosto devorado que agora se descobre ainda mais inexpressivo, tentamos sair dos quartos deixados à deriva, onde nos era impossível tocar a nossa raiz e recobrar-nos, provar os frutos com sabor a tempo.

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