Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

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Episodes

Friday Mar 01, 2024

Para preservar o desejo hoje sentimos uma necessidade de fuga, de escapar aos ambientes onde o vazio é disfarçado com recurso a formas de pirotécnia, a essas redundâncias esterilizantes que tomaram conta dos modos de representação culturais, tendo-se permitido que os alicerces da literatura portuguesa apodrecessem, acelerando o esquecimento sobre o que foi feito antes para que os nossos generais de aviário pudessem beber a consagração até às fezes. Tem sido cada vez mais difícil desenvolver esforços no sentido de dissolver aquela estupidez tradicionalista que se instala como um bolor em torno das figuras que nos serviram magníficos desacatos, contrariando esses facilitismos e fábulas provincianas em que se aquecem os nossos recitadores medíocres. O passado e os mortos resistem às convenções museológicas, e estão ali aqueles artistas que melhor jogaram no sentido da carnavalização das suas próprias identidades, apontando a esse paralisante enredo narcísico que é hoje a primeira estrutura que é nessário demolir se quisermos prosseguir o esforço de desintegrar a realidade maciça e ruidosa que nos tem subjugados. É como se não fôssemos capazes, no curso normal da vida, de nos sabermos o órgão do tempo, os agentes do que se segue. Se queremos propor um recomeço, talvez devêssemos desde logo deixar de lado essa concepção piedosa da cultura, que se impõe sempre como uma forma de castração,  um apelo à resignação infinita, propondo em seu lugar uma concepção positiva e que integre desde logo o imenso mal-estar que sentimos, permitindo elevar o registo dramático, conflitual, e dando expressão até a uma pura raiva contra tudo e contra todos. Por agora, e enquanto essa água morna continua a inundar tudo, resta reconhecer que não temos as condições para propor uma transformação profunda do ambiente ao nosso redor, falta um mínimo grau de solidariedade das consciências quando a própria noção do mundo é algo que nos divide em vez de nos animar a assumir uma busca e uma luta em comum. Os próprios livros parecem referir-se cada vez mais a uma relação que está ausente do viver comum ou que exprime uma nostalgia face a um idealismo ou ingenuidade perdidos. A nossa gramática cultural parece esvaziada de um propósito, impedindo-nos de firmar desejos e metas colectivas, e, assim, tudo parece destinado a desvanecer-se ensaiando poses irónicas ou sarcásticas para essa eternidade demasiado transitória ou degradante. A maior derrota que sentimos, contudo, é que quando alguém fala todos se põem a adivinhar a formulação que lhe irá sair, mas são cada vez menos aqueles que permanecem vigilantes, admitindo que possa ser a imprevisibilidade a falar pela sua voz. Somos assim derrotados pelas nossas próprias expectativas, e fica em causa o sentido mais profundo da amizade, aquela disponibilidade que, segundo Blanchot, passa pelo reconhecimento da estranheza comum que não nos permite falar pelos nossos amigos, mas apenas falar com eles, reservando, mesmo na maior familiaridade, essa distância infinita, essa separação fundamental que abre caminho a uma interrupção do curso mais banal dos dias. Neste episódio, juntou-se a nós Rui Lopo, um assumido "arqueólogo" literário, que se tem dedicado há bons anos a um trabalho de restituição e renovação do diálogo com alguns desses autores que nos deixaram exemplos mais proveitosos e encorajadores, alimentando o estado de vigília, e incitando em nós uma capacidade de avaliar e pôr em crise os símbolos do poder e os seus mais insidiosos condicionamentos.

Friday Feb 23, 2024

Hoje é impossível escapar ao futebol, a essa redução essencial da tragédia a um espectáculo que segrega uma mitologia degradante, cercada de um fervor e de formas de culto alienantes, providenciando uma linguagem que chega a todos, um discurso que invade até o campo da religião, chamando a si termos como catedral, milagre, fé, comunhão, consagração, sagrado, salvação, ressurreição, veneração, inferno, o diabo ou a mão de Deus. À medida que o adepto se torna um fiel, benzendo-se em nome do seu clube, sacrificando-lhe e aos seus ídolos de chuteiras as suas preces, superstições, todos os seus sinais de devoção, por outro lado ganha expressão um regime adversarial através do qual “o medíocre se transforma em herói”, como nos diz Agustina, projectando-se “no furioso trabalho do peito, dos ombros, dos pés”, e resolvendo assim a sua agressividade, que o reduz a uma impotência cada vez maior, a uma cólera que vê na equipa contrária a representação de todos os males, toda a indefinição e bloqueio da sua própria vida. Tudo conspira para que o futebol assuma uma presença que vai muito para além dos estádios, uma ênfase desproporcionada que permite inocular o seu vírus, produzindo nas massas uma reacção coreografada, com as multidões a responderem à chamada, colocando-se em cena e dispondo-se a esse dever do confronto, a essas rivalidades fabricadas, a responderem hipnotizadas ao clarim de guerra. Multiplicam-se por todo o lado os sinais da contemporização face aos excessos a que são levados os adeptos devido ao clima de fervor produzido pelo “ininterrupto matraquear futebolístico do espaço público”, o que conduz a um estado de excepção em que, como sinaliza António Guerreiro, nos submetemos alegremente a essa “continuada violência simbólica, exercida através do empreendimento dos media”.  O futebol surge assim como essa “religião laica do proletariado” (Eric Hobsbawn), na medida em que alimenta uma perspectiva de redenção, em que oferece este regime de intoxicação voluntária, com os fiéis deste culto a permitirem-se essa forma de delírio que, por alguns instantes, lhes permite esquecer o desencantamento da vida moderna, lendo nos caracteres do fenómeno futebolístico espalhados por toda a parte uma articulação para essas aspirações heroicas, uma sentimentalidade e emoção exacerbadas num confronto de alienados. E é esse delírio que permite que tudo seja permitido, e a corrupção se instale e normalize. Assim, à boleia dessa benevolência, a violência é normalizada, o ódio vê-se banalizado e torna-se um elemento chave que permite animar fórmulas de populismo, os nacionalismos xenófobos, os regionalismos atávicos e outras formas de ódios identitários ou racistas, originando “uma regressão cultural generalizada”. Marc Perelman defende que este tem permitido uma inversão das posições políticas tão profunda que, actualmente, “o chauvinismo e o nacionalismo engendrados pelo futebol já não são denunciados, mas postos em evidência como manifestações de uma revitalização dos povos”. Assim, vemos serem encenadas manifestações que nos transportam para uma nostalgia do fervor totalitário, um eixo de representações que preparam as condições para um fascismo de sorte alienante que serve para distrair inteiramente os homens do seu destino. Para nos oferecer alguma perspectiva e também para aprofundar ou reenquadrar algumas destas ideias, neste episódio contámos com a experiência e o conhecimento de campo de Luís Filipe Cristóvão, escritor que teve em tempos actividade como livreiro e editor, e que hoje é jornalista e comentador desportivo. A partir de um espaço mediático densamente povoado pela linguagem do futebol-indústria, Cristóvão tem procurado valorizar a dimensão comunitária e associativa do futebol, bem como arriscar a mobilização de um olhar sobre o jogo que  procure pensar e problematizar as suas relações com a organização social e política.

Friday Feb 16, 2024

Goliarda Sapienza costumava dizer que os mortos deixam de ter razão se depois da sua morte ninguém os defender. Hoje essa advocacia fulgurante e desinteressada tem vindo a degradar-se, uma vez que os vivos estão demasiado empenhados em promoverem-se a si mesmos, a ponto de fazerem tábua rasa da memória e da tradição. Aquela autora italiana estava, ao mesmo tempo, bem ciente de que o tempo hoje é substancialmente antiliterário, e que vivemos num mundo que tende a estar todo cheio, permanentemente ocupado, distraído. Entre nós a única virulência que parece restar ao meio literário é o seu silêncio. Quem não engula a sua hóstia literata nem preste culto aos santinhos de altar ao dispor logo se vê ostracizado. Enquanto isso, culturalmente, o país vive absorvido por tematizações ligeirinhas, constantes inventários e balanços, generalizações supressivas e elencos que se organizam naquele regime do saco de gatos. Em vez de um lugar de tensões e de conflito, de um espaço prospectivo onde possamos desdobrar uma dimensão que não se restrinja às operações promocionais, damos por nós encarcerados nesses dispositivos religiosos da economia, que domina todas as manifestações. Neste ambiente desolador, nada nos deveria empolgar mais do que essa obstinação sempre desfeita, desencorajada, desenfreada com que cada um de nós tenta superar estes bloqueios e impedimentos. Em certo sentido, as obras marcantes da literatura portuguesa estabeleceram sempre uma relação vingativa com o esquema sentimental e moral que as cerca, manifestando a força daquilo que teve de se construir e operar na cladestinidade, contra o conformismo, contra os bonzos de toda a espécie e proveniência. Uma e outra vez, o que estas obras nos lembram é que a promessa de um mundo que começa com uma catástrofe não é necessariamente contraditória. Hoje, a própria esperança é algo que só conseguimos conceber depois de um longo período de devastação. Enquanto leitores, vamos por aí a dar pelos hieróglifos desse tempo que nos espera, criando, a contragolpe, uma espécie de euforia do luto. A escrita foi tida em tempos como a religião das pessoas que não acreditam em nada, que interrogam a sua noite, que se dispõem a mergulhar no desconhecido através do acaso. Num certo sentido, para o processo literário nos ser restituído, talvez o mais importante não seja a síntese, a bela totalidade, a prossecução de um regime unificador, mas operar uma série de profanações, participar pela distorsão, o esquartejamento, valorizando a diferença e a exterioridade em qualquer forma. Neste episódio, e para um diagnóstico mais profundo destas e de outras questões, socorremo-nos de um escritor e crítico literário que se obriga diariamente a fazer um desvio do ofício de neurologista, sendo um desses cada vez mais raros escritores que têm uma série de romances na gaveta, e que não abdicam daquela obstinação sempre desfeita, num tempo em que vivemos cercados de leitores preguiçosos, alheados, muito satisfeitos com os horizontes moles da cultura oficial e patrocinada, e em que os meios técnicos da comunicação e expansão nos condenam a apodrecer enquanto esperamos que chegue a altura de sermos contemporâneos da nossa consciência artística.

Sunday Feb 11, 2024

Este episódio surge como o nosso especial de Carnaval, depois de um convite da Livraria da Lapa,  e com a proposta de lançarmos dois livros de naturezas bastante diversas, ainda que não inconciliáveis, de uma assentada. Se aquela tarde não for relembrada por mais nada, talvez o seja por uns poucos como um encontro num momento de desordenada suspensão, num momento em que, de diferentes formas, procurávamos ainda sobreviver sem nos perdermos numa "atmosfera literária de morna mediocridade", enquanto filhos de uma época merdonha, em que parece cada vez mais difícil vislumbrar a primavera de um tempo vindouro. Quando tudo se combina num efeito meramente cumulativo para nos oferecer essa perspectiva de uma "actualidade" que prescinde da história e da memória, há este receio de tudo estar condenado de antemão a alguma forma de esterilidade ou dissolução, mas este receio é em si mesmo indecente, sendo mais outra forma de cedência à passividade. É indecente porque significa de facto renunciar não só à excelência, mas também à nossa própria verdade, à tentativa de formularmos um ânimo colectivo que seja produtor de novas aberturas ou brechas. É renunciar provavelmente ao único heroísmo que nos resta, e que foi sempre esse esteio, essa força e vitalidade da literatura. Contra um ambiente de sórdida banalização e de fugas que se concertam para nunca coincidirem em nada de substantivo, quisemos encontrar-nos tendo como pretexto o aparecimento de dois livros estranhos, recusando esse regime de aligeiramento na relação com os textos, com a leitura, e que de algum modo estão ligados neste esforço de se aprender a carregar o fardo do destino que nos coube. Afinal, e por mais distracções em que se queira enterrar a cabeça e o juízo, a nossa própria vida segue e impõe-se em si mesma como um problema: como vivê-la? Se nos recusamos a uma exposição auto-celebratória, aos desfiles das belas almas que procuram reduzir a vida literária a mais outro concurso de moralidades hipócritas, por outro lado, também não cedemos a esse esforço de contrabandear como mercadoria proibida a nossa própria consciência. Tendo em conta o abandono e até a violentação pindérica a que os modos próprios da literatura se vêem sujeitos, não abdicamos desse confronto nem aderimos à noção de uma "aura" confeccionada a partir de tudo o que se serve do valor da distância, aquilo que sendo difícil de alcançar se torna belo por isso. "Belo e talvez com um toque de sagrado", diz-nos uma das personagens de Don DeLillo. "E a pessoa que se tornou inacessível adquire uma graça e uma inteireza que é motivo de inveja para os demais." Não estamos nessa. Não adulamos o escritor que ao não mostrar o rosto se convence de que assume assim o papel do demiurgo, invadindo território sagrado. Tanto escritor que, apenas porque deserta, se convence de que nessa suposta marginalidade está a jogar o jogo de Deus e aumenta assim as suas chances de cativar um lugar à mesa da posteridade. Por outro lado, entre o "País Rato", de Jorge Roque, e o "O Anticrítico", deste vosso canalha para todo o serviço, duas edições vindas a lume sob a mesma chancela (Maldoror), naquela tarde tudo estava perto demais da terra para significar outra coisa que não fosse um segredo violento, de tal modo que nos nossos gestos tudo exprimia aquela esplêndida pequenez que é a essência do bairrismo e que está na margem oposta ao ambiente elusivo do espectáculo. Talvez isso possa ser por si mesmo um regime de dissidência auspicioso.

Friday Feb 09, 2024

De algum modo, hoje todos nos sentimos em perda, num luto sem um objecto certo, uma angústia difusa, convencidos de que somos incapazes de extrair um nexo desses dez mil farrapos de desinformação, condenados a alguma forma de neurose. Supomos que a realidade se tornou demasiado intensa, um enxame fervilhante cuja dispersão celular derrota a nossa capacidade de apreensão. A dolorosa imprecisão de todos os diagnósticos atravessa-nos uma e outra vez, desgastando-nos, e só raramente chegamos a compreender que, na verdade, isto não é próprio da realidade, mas de todas essas hipóteses virtuais que sacodem até corromper a consciência. Degrada-nos sentir como o futuro parece corresponder apenas às pretensões daqueles que estão alinhados com as multidões, esses que passam pelos dias cantando o êxtase de tudo aquilo que nos afasta do mundo. Como notou W.H. Auden, “a mais vulgar das torres de marfim é a do homem médio, esse estado de passividade face à experiência”. No sentido oposto, para nos guiar numa descida ao tão ameaçado enredo da realidade, neste episódio recorremos a António Brito Guterres, um sagaz intérprete que se baseia nos registos afectivos para cartografar esses territórios desfalcados, alguém que não se deixou dominar pela volúpia dos conceitos e da teoria, mantendo-se implicado e procurando superar esses instrumentos de análise obtusos que procuram reduzir todas as verdades a meia dúzia de fórmulas, mais ou menos rebuscadas, copiadas, memorizadas, passadas de mão em mão. Num esforço de vencer a perda de escala e de intimidade, este agente que traz os bolsos cheios de uma infinidade de chaves, não se limita a mapear, mas é ele mesmo um cerco à cidade num tempo em que esta parece estar a escapar. São cada vez mais as margens empurradas para uma forma ou outra de clandestinidade, e ele compreende melhor que ninguém que Lisboa ,como qualquer outra grande cidade, não é outra  coisa senão um instrumento de medição do tempo. Não há melhor pessoa para pararmos na rua se quisermos saber com alguma precisão que horas realmente são. Num tempo em que dormimos e comemos imagens, rezamos a imagens, vestimos imagens, é bom podermos seguir alguém empenhado em desenhar um percurso incapturável no meio de nós, sem se perder nem se deixar arrastar por qualquer formigueiro. Um cicerone capaz de lançar a âncora quando todos zarpam atrás de miragens virtuais. Sem  se reconhecer nas imagens dominantes ou nesses quilómetros de delírio que fazem das cidades um feixe do espectáculo que hoje está em toda a parte, Guterres dá-nos a ver o elemento de ruína que se esconde em todos esses projectos mírificos com que nos acenam, descortina os esquemas, expõe esta cidade como uma teia de aranha suspensa sobre um abismo.

Friday Feb 02, 2024

O regresso ao corpo seria a Odisseia dos nossos dias, pelo modo como vivemos dispersos, alheados, infinitamente desgastados, carregando um cansaço crónico, "ou melhor, de cronos", como escreve Joana Bértholo logo no arranque do seu livro mais recente, "O meu treinador". Estamos todos cansados de lidar com o tempo, com as incessantes compulsões a que vivemos submetidos, sentindo a nossa atenção consumida, constantemente aliciada, cativada ou capturada, comprada, subornada, defraudada, pervertida, presa. Como se lê no editorial do mais recente número da Electra, dedicado a este tema, "sem atenção, o mundo torna-se disperso, insustentável e até ausente - e nós dispersos, insustentáveis e ausentes nele". Se houve um movimento da Presença entre nós, o mais honesto seria reconhecer que vivemos hoje o seu oposto, num regime da Ausência, desfocados, incapazes de fixar os nossos próprios contornos, estamos contaminados pelo ruído. Regressar ao corpo seria recalibrar os instrumentos da nossa perseguição ao real, procurando restabelecer uma atenção tranquila e indestrutível. Seria desde logo necessário voltar à condição do principiante, aquele que é capaz de criar aberturas, inícios. De forma a evitar esta aniquilação em que somos coagidos pelos elementos que nos cercam, de forma a retomarmos escolhas e até erros próprios, teríamos de aceitar um largo período de suspensão, sem chegarmos a lado nenhum. Na linha daquilo que desejava Beauvoir, criando um percurso feito todo ele só de pontos de partida, tendo a humanidade em cada homem um novo ponto de partida. "E é por isso que o jovem que procura o seu lugar no mundo de início não o encontra e se sente desamparado, inútil, sem justificação." A nossa convidada neste episódio tem atrás de si um longo e exigente percurso em que foi obrigada a repensar bem os critérios pelos quais era avaliada ou se avaliava a si mesma, percebendo como muitas vezes o que parece um falhanço pode apenas ser a distância errada. Como assinalava Wallace Stevens, a nobreza da poesia “é uma violência interior que nos protege da violência exterior”. Hoje, resgatar a consciência e e possibilidade de definir um destino autónome não exige menos do que uma poética nestes termos. Cabe-nos escapar à guerra de concorrência sem tréguas que é travada em todos os planos, devassando a nossa intimidade, ao ponto de sermos expulsos dela, e perdermos a capacidade de nos defenirmos e também de sentirmos desejo. Nicholas Carr remete-nos para esse entendimento que colocava no início o Verbo, do qual a própria carne deve decorrer. Este autor assume a nostalgia do velho cérebro, isto é, do cérebro literário. Em oposição à distracção a que somos submetidos na época pelos media digitais, a cultura do livro favorece a concentração. O velho cérebro é, segundo Carr, uma mente linear, literária, que foi o fulcro da nossa sociedade, da arte e da ciência. António Guerreiro sintetiza a sua tese, vincando como o acesso a uma quantidade de informação e a experiências inimagináveis até há pouco tempo tem o efeito de alienar "o que temos de mais autêntico, já que os instrumentos entorpecem as nossas capacidades naturais mais humanas e mais íntimas, as do raciocínio, da percepção, da memória e da emoção".

Friday Jan 26, 2024

Quando chegar a altura de erguermos o nosso próprio muro das lamentações, em tantos dos bilhetes deverá ler-se a muita pena de não termos feito mais festas, levado mais gente para a cama, talvez porque essa sim parece ter sido uma lição decisiva, a de que não poderíamos levar uma existência artística ficando limitados ao dia, mas deveríamos ter procurado por todos os meios alcançar a vida nocturna da humanidade bem como os seus mitos e símbolos. A embriaguez, o sonho capaz de pôr em causa a realidade do dia vivido e dele extrair certos pedaços, fragmentos bizarros, ordenando-os de forma ilógica num padrão arbitrário. Repetiremos as frases dos nossos mortos que testemunharam plenamente o absurdo, escrevendo-as e enfrentando-as como hieróglifos, tentando chegar ao fundo da sua razão de ser, mas teremos perdido toda aquela experiência que exige algo mais do que a inteligência. Deveríamos ter passado mais tempo a contar uns aos outros os nossos sonhos, a recriá-los, reconhecendo que nada na arte, nem mesmo os mais inspirados mistérios da música, é capaz de igualar os sonhos. Talvez só a exuberância das celebrações dionisíacas tenham permitido lançar as nossas sombras para lá dessa linha que delimita o campo do possível. Seria bom se tivéssemos escavado algum "covil de piratas, feito de pessoas que sabem desfrutar dos seus últimos momentos de liberdade, flores que sabiam durar apenas umas breves horas". Mas estamos dominados pela ânsia da duração, e a luz artificial é de tal modo constante que não chegamos a acostumar os olhos às trevas, a aprender a ler essas subtis variações do negro. Neste episódio, retomamos a indagação sobre os desastres que nos aguardam antes de ser tempo de reclamarmos de volta a condição política. Relembramos as palavras de Georg Büchner  numa carta à família, assinalando como nos últimos tempos aprendera que "só a inevitável miséria das grandes massas pode produzir transformações e que qualquer agitação ou grito de indivíduos isolados não passa de estéril obra de loucos". E acrescenta: "Se escrevem, ninguém os lê; se gritam, ninguém os escuta; se agem, ninguém os ajuda... Não estou disposto a meter-me em jogos revolucionários infantis, nem na política de intrigas imperante". É um retrato do vazio em que nos sentimos afundar por estes dias. Por demasiado tempo acreditámos que seria possível opor algum tipo de resistência virando costas, perseguindo alguma fantasia até aos limites da realidade, mas não demorou muito até que nos víssemos circunscritos a um sótão qualquer, cercados de um museu desmazelado onde pululavam velhos manequins fantasmagóricos de uma loja de modas com um tal cheiro a mofo que este se introduziu nos nossos sonhos ao ponto de até neles termos dificuldade em respirar. Dos nossos sofás gastos vamos assistindo à bancarrota de todas as instituições da alegada maturidade emocional, como nos diz Luhuna Carvalho. Mas o mais difícil é imaginar o que seria capaz de nos fazer despir esta velha carcaça e sentir de novo o desejo de dançar com os outros. Acolhidos na sala deste cicerone marcial, quisemos explorar um outro tipo de constituição moral, começando por fundar de novo o conteúdo da ideia de "amizade". E a partir daí, aproveitando o balanço e a audácia desafiadora dos Houthis, pudemos lançar-nos a supor novos mundos em vez dos velhos. E aqui bem podemos guiar-nos pelo fervilhante onirismo de Joyce ao vislumbrar uma "união de todos, judeus, muçulmanos e gentios. Três acres e uma vaca para todos os filhos da natureza. Carros funerários-salão motorizados. Trabalho manual obrigatório para todos. Todos os parques abertos ao público dia e noite. Lava-loiças eléctricos. (...) Amnistia geral, carnaval semanal, com licença de máscaras, bónus para todos, esperanto a fraternidade universal. Não mais patriotismo de esponjas de bar e impostores hidrópicos. Dinheiro livre, amor livre e uma igreja laica livre num estado laico livre."

Wednesday Jan 17, 2024

Querem convencer-nos de que estamos encurralados na estação morta e que daqui não há saída, que não nos resta alternativa senão seguir adiante e acatar os maus modos e destratos da época que nos calhou viver. Enquanto isso, enquanto prosseguem na sonegação dos melhores espíritos desta geração, garantem-nos que o problema é que nos falta o génio e a invenção ou o grau de empenho necessário. Pintam-nos como um bando omisso, ou então assemelhando-nos a uma multidão de palhaços miseráveis, abandonados na ponte, olhando para baixo, para o nosso circo submerso. E alguns acreditam que somos só isto. O retrato degradante que nos fazem. Querem-nos trancados diante de espelhos que deformam cada gesto, servindo-nos como eco e reflexo essa forma fantasmagórica que se ergue dentro de alguma jaula. Se abrimos a boca os velhos olham-nos como se tivéssemos disparado uma arma contra o seu silêncio. Conseguimos ouvir a ferrugem a descascar os ossos deles, e a chuva e o frio a atravessar-lhes as correntes sanguíneas, deixando por vezes que irrompa por um momento nos seus olhares moribundos. Continuam a censurar-nos considerando que não estamos adequadamente vestidos para um funeral. E tudo por aqui são funerais. Parece que estão ali desde sempre, colados aos bancos de madeira. Ninguém se lembra sequer de os ter visto de pé, andando por aí. Estão ali todos os dias, todas as semanas, todos os anos, fumando ou mascando seja o que for, tagarelando invariavelmente sobre as politiquices e fingindo que decidem o que fazer com o país. Do país só ouvimos rangidos, como os de um imenso navio fantasma atravessando vagas que nem lá estão. Encalhou há muito. E o tal mar português também  deixou de existir. Ninguém o olha e consegue acreditar que seja ainda uma criatura viva, lembrando apenas um fóssil imperturbado pelo desenrolar da eternidade. Para nos distraírem, muitas vezes têm lojas perto dos cafés com letreiros afixados onde se pode ler: "Vendem-se canários". Mas, entrando, damo-nos conta de que o pipilar que se ouve não passa de uma gravação. Passa-se algo semelhante com todos os sinais de vida que exibem. E é a partir disto que é suposto que cada nova geração recomponha o passado. Ora, como nos diz John Dos Passos, que tinha antepassados lusos, "em tempos fáceis, a história é uma espécie de arte ornamental, mas em tempos de perigo somos levados ao registo escrito por uma necessidade premente de encontrar respostas para os mistérios de hoje. Em tempos de mudança e de perigo, quando há uma areia movediça de medo sob a racionalidade humana, uma sensação de continuidade desde gerações passadas pode estender-se como tábua de salvação através do presente assustador e levar-nos a ultrapassar esse engano idiota, que bloqueia o bom pensamento, que é o de que o 'Agora' é incomum". Roubam-nos o dia de amanhã aldrabando os registos sobre o que se passou ontem. Por isso insistimos em criar um catálogo de exemplares raros e que eles tentam por todos os meios fumigar e exterminar. E desta vez, com José Smith Vargas, deixamo-nos levar pelo seu traço nervoso e mordaz, pelo seu modo de se esquivar a impressões gastas, captando a incerteza ao desenhar e escrever uma crónica das transformações a que têm sido sujeitas as próprias cidades onde vivemos, rejeitando conclusões apressadas, agarrando os elementos espectrais de vidas interrompidas ou sufocadas pelo triunfo dos valores especulativos e a fragilidade que da própria existência fez apenas os termos de um negócio.

Tuesday Jan 09, 2024

É das poucas liberdades exaltantes que ainda nos restam, a de nos demorarmos a divagar rente às feridas e às transformações, e de nos desfazermos de inúteis particularidades para mergulharmos no que é comum. Também os homens formaram bandos, numa firmeza de assalto capaz de fazer da realidade outra coisa, e houve aqueles que só entendiam a sua força enquanto partículas elementares: "Nós nascemos vários e morremos um só." É um ideal que soará demasiado estranho aos deste tempo, mas restam ainda sinais, trechos crepusculares num registo delirante, testemunhos que persistem nos muros expectantes, erodidos pelas paixões mais graves. Aí podemos ler listas de herdeiros e inimigos que foram assentando esses notários inconscientes. A conversação é a única forma de arte que nos lança na direcção do que é comum, e temos então essa tarefa de conspirar como quem trabalha numa inteligência rumorosa, cumulando experiências, ultrapassando o desastre do isolamento, todos esses constrangimentos sociais que funcionam como subtis formas de repressão. "Naturalmente não é a primeira vez que os homens se vêem perante um futuro materialmente sem saída", lembrava Camus, mas se tinham essa voz comum que lhes permitia dispersar certos receios, se os desafiavam através da palavra e do grito, hoje a nossa fragilidade vem precisamente de nos faltar um caminho para essa relação mais aberta, nutrindo-se desse vigor ardiloso. Diz-nos Camus que estes homens "apelavam para outros valores, que lhes transmitiam esperança". Pelo contrário, "hoje, já ninguém fala (a não ser os que se repetem), porque o mundo nos parece guiado por forças cegas e surdas, incapazes de ouvir os gritos de alerta, os conselhos ou as súplicas. Algo em nós foi destruído pelo espectáculo dos anos que acabámos de passar. E essa coisa é a eterna confiança do homem, que sempre lhe fez crer que podia obter de um outro homem uma reacção humana, desde que lhe falasse a linguagem da humanidade. (...) Vivemos asfixiados no meio de pessoas que crêem ter absoluta razão, seja nas máquinas, seja nas ideias que têm. E para todos os que não podem viver privados de diálogo e de amizade humana, um tal silêncio é o fim do mundo.” Por isto mesmo, por sermos frágeis, e por nos recusarmos a tentar tirar sentido de uma sucessão de acidentes, e assumir um orgulho patético por uma individualidade que se distingue dos outros por ninharias, falamos, revezamo-nos ao longo da muralha. A verdadeira resistência começa pelo mais simples, por se recusar a integrar esse logro em que vão sendo promovidos certos indivíduos, lacerados, exilados, condenados, tentando sobrepor-se aos seus conflitos e à sua solidão perseguindo a louca imagem da unanimidade. Têm necessidade dela para substituir os sinais que não foram inscritos na sua carne, os hábitos que não lhes foram dados, os caminhos que não foram abertos para eles, em resumo, para viver. Precisamos desse outro excedente da espécie humana, dessas improvisações fulgurantes que vão reescrevendo uma antologia perpétua das melhores noções ao nosso dispor. Neste episódio contámos com a disponibilidade de Miguel Faria Ferreira, um tipo que sabe das leis o suficiente para se alforriar e ir contemplar o outro lado da vida, um viajante que tem buscado conhecer o que é do mundo para lá desse regime mais linear e frívolo dos que julgam escapar à sua insignificante pessoa exibindo repugnância por tudo quanto lhes parece estranho.

Thursday Jan 04, 2024

Se o nosso tempo não nos diz puto, todos os dias parecem ser domingo neste povoado à beira-mar e que eles se esqueceram de bombardear. Era mais ou menos isto que ouvíamos de uma dessas canções da nossa adolescência, e de algum modo batia certo, pois a sensação de desenraizamento deixa margem a uma estranha ânsia de aniquilação. É isso o que secretamente desejávamos quando se falava num ano novo: que se pudesse limpar com um pano molhado aquilo que ficou escrito no quadro, essas noções limitadas e desidratadas que nos obrigavam a decorar. Hoje faz-nos rir todo o tipo de imbecilidades com que eles nos martirizavam, e parece que até esse passado, com as suas estruturas inquestionáveis e misteriosamente harmónicas, se encontra destroçado e a ruir diante dos nossos olhos. E, no entanto, nem isso nos alivia da ansiedade histórica com que vivemos. É ridícula a ideia de se acolher numa data específica uma ideia de renovação, um futuro refeito de todas as decepções que carregamos, e sobretudo fazê-lo segundo um sistema de registro completamente arbitrário. Mesmo depois de ultrapassarmos a esperança, que foi durante muito tempo a nossa principal fraqueza, o problema com as datas em geral, as epoquizações e balanços que fazemos, é que não podemos programar os nossos apocalipses. A 1 de janeiro de 1916, Gramsci publicou uma coluna intitulada "Odeio o dia de Ano Novo" no jornal oficial do Partido Socialista Italiano, "Avanti!" Começava assim: "Todas as manhãs, quando desperto de novo  sob o céu nublado, sinto que para mim é dia de Ano Novo. É por isso que detesto estes anos novos que caem como prazos vencidos, que transformam a vida e o espírito humano numa empresa comercial, com o seu saldo final bem arrumado, os seus montantes pendentes, o seu orçamento para a nova gestão. Fazem-nos perder a continuidade da vida e do espírito. Acabamos por pensar seriamente que entre um ano e o outro há uma pausa, que começa uma nova história; tomamos resoluções e arrependemo-nos da nossa irresolução, etc., etc." As datas que assinalamos, no entender de Gramsci, não passam de "penas de prisão espiritual" que nos foram impostas pelos "nossos tolos antepassados". Tornaram-se "invasivas e fossilizantes", forçando a vida a repetir séries de "ritmos colectivos obrigatórios". Era bom que a desculpa de um ano novo pudesse servir para fechar esse parêntesis da imbecilidade mascarada de civilização, da anemia mascarada de fulgor, e servisse para forçar um intervalo, um período de suspensão e exame crítico, ou até um exorcismo. Dos milhares de acontecimentos que sobrevêm todos os anos nunca poderia resultar uma harmonia perfeita, empurrando no mesmo sentido. Mas cada vez são mais as coisas que não foram digeridas, e que se guardam em nós de forma atropelada, gerando uma sensação de impotência ou indisponibilidade. Prisioneiros de um regime de aceleração maníaca, só o exorcismo revelaria uma reacção em força perante esta forma de possessão. Mas se esperamos dos intelectuais com banca e atestado, dos críticos e demais panegiristas profissionais que se ocupem destas tarefas, estamos bem lixados. Contudo, há uma indisposição geral que parece abrir margem para a organização do nosso pessimismo. Na Cidade cosmopolita, há focos de desordem, a inquietação respira-se no ar, como no poema de Cavafy: "E porque não vieram hoje, aqui, como é costume, os oradores/ para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?/ Porque os bárbaros é hoje que aparecem,/ e aborrecem-se com eloquências e retóricas." Ainda não chegámos aí, é claro. Mas já alguns viram costas à família, e se mostram dispostos a assumir a felicidade da derrota, a felicidade de ter de recomeçar tudo de novo. Neste episódio recebemos João Oliveira Duarte para nos ajudar na busca desse efeito libertador, a concatenar juízos severos para nos furtarmos à desgraçada benevolência de um tempo que se agarra a esses rituais e ritmos colectivos na tentativa de adiar a promessa aniquiladora deste tempo.

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