Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

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Episodes

Friday Mar 29, 2024

Por cá, nas representações que fazemos de nós próprios, cedemos demasiado depressa ao registo da paródia mais alarve. É um modo de nos defendermos do nosso encanto, das primeiras e mais honestas ambições. Recosemo-nos no interior dessa carapaça desgostante, e assim nos vamos aliviando das exigências que chegámos a alimentar. Hoje, qualquer reflexão que se manifeste entre nós aparece antes de mais como paródia, e é muito difícil ir além dela. “As asas voltam a entrar no pássaro para o atar”, como escreveu Éluard. Seria preciso que o país aderisse, não aos regimes alfandegários e aos mercados comuns, mas ao surrealismo, perdendo o medo de nos surpreendermos, deixando de usar a moeda Bem-Mal, rejeitando corromper o ideal amoroso segundo o regime mesa-de-família-cama-de-casal. Deveríamos preferir o abuso a estes tristes usos que vamos dando à vida. Em vez de sufocarmos em intrigas de poder, mais valia que nos abandonássemos de vez à nossa propensão para a rebaldaria, reconhecendo como o acaso é uma força esplendorosa, e talvez então emergissem novamente impetuosos navegadores nesta tão desfalcada raça. Tudo o que pensamos, exprimimos e fazemos engrossa uma conspiração contra as nossas próprias aspirações, e era preciso assumir um desejo que nos ligasse à realidade, esta que por falta de empenho dos espíritos com alguma apetência lírica, simplesmente recusa a existência do poeta. Se nos tornámos muito hábeis em desenvolver essas debilidades que nos sirvam como justificação para não irmos além do que já somos, isso explica que, por agora, a nossa ainda seja só uma cultura que serve de desculpa. Não fazemos outra coisa senão pedir imensas desculpas por não estarmos à altura de algo mais. Lá nos vamos acolhendo e conformando com a estafada vidinha, a “videirunha à portuguesa”. E, se não deixámos de ser pobres, nunca sequer assumimos as nossas obrigações para com essa condição. Temos o rancor e o ressentimento, mas faltam-nos as forças que lhe são próprias. Como lembra Borges, “ser pobre implica uma posse mais imediata da realidade, um passar por cima do primeiro gosto áspero das coisas, conhecimento que parece faltar aos ricos, como se tudo lhes chegasse já filtrado”. Como não nos livramos dos complexos e da vergonha da nossa realidade, só herdamos filtros, aderimos a esse patetismo degradante de quem se humilha a si mesmo, se escraviza a si próprio. Face a todo esse enredo, a nossa maior pobreza é mesmo o medo que temos de nós próprios, e uns dos outros. Em vez de nos reconhecermos e instigarmos, a nossa cultura apenas nos abafa e trucida. Em vez de retirarmos encorajamento da noção de que há muito por fazer, para nós não parece haver nada mais exasperante que o facto de nós podermos significar ou dizer seja o que for. Se não somos nada ou somos tão pouco, em vez de nos agarrarmos a isso, poderíamos aproveitar e aventurarmo-nos, sermos a frescura vindoura. Seria bom que abdicássemos dessa torpe etiqueta, da barafustação inconsequente, impedindo que o odor dos escombros se dissipe. Uma mulher feita para si mesma, um homem que correspondesse às suas próprias necessidades, isso seria algo que nos faria enfim ter vontade de sacudir as nossas vidas, e vesti-las com certo garbo. Talvez então pudéssemos acolher verdadeiros prodígios, livrarmo-nos dessa telenovela que sempre só tem ouvidos para a bisbilhotice que a todos nos rebaixa. Raramente temos dado a oportunidade uns aos outros para abrir a boca, ou segurar a caneta, não para vir com as bacocas frases do costume, mas para falar do que, em penetração, nos atrai ou comove. Somos assim relativamente mudos, e forçados a pagar multa sempre que assumimos um registo eloquente, sempre que levamos a vida à boca e a reproduzimos com um vigor fantasioso. Derrotados por essa miopia que nos serve de amparo e desculpa, recusamos o conhecimento nítido e imprevisto de que a vida se corresponde, mesmo que de longe em longe, com a poesia. Neste episódio, e com o centenário de Alexandre O’Neill a pairar sobre nós, pedimos ajuda à sua biógrafa, Maria Antónia Oliveira para nos ajudar a pisar esses óculos que muitas vezes servem menos para ver melhor do que para filtrar certas coisas. Ela que também está ansiosa por se despedir dessa forma de viuvez lançada em cima de quem quer que componha e trate da limpeza a seco para a posteridade de um fato de autor corroído pelas traças, vem falar-nos dessas outras assombrações que tem cultivado, num generoso esforço por traduzir em termos vitais um bando de personagens que nunca se quiseram mortas, e melhor ou pior, foram toureando essa e outras fatalidades.

Friday Mar 22, 2024

Uma ilustração adequada da condição mais comum dos nativos digitais seria uma perspectiva de campos a perder de vista dominados por uma espécie de plantação onde os corpos estivessem alojados em casulos, como larvas incapazes de completar a sua metamorfose, diluindo-se aos poucos numa espécie de banho amniótico, exercitando o seu suposto potencial através de uma infinita sucessão de projecções virtuais. Passeando por ali, ouvir-se-á uma toada ou murmúrio que vai de boca em boca, com variações subtis entre um perpétuo suspiro ou bocejo, entrecortados por alguns gemidos de deleite ou de frenético prazer. A sensação é a de estarmos numa imensa sala de um casino, mas sem música de fundo ou os ruídos das slot machines, apenas esse rumor contínuo, o de um longo processo de digestão. Vivemos no estômago da máquina, num conjunto de galerias infernais, fora do tempo, demasiado longe do mundo, processando estímulos cada vez mais rarefeitos. Num processo de respiração assistida, a nossa actividade psíquica é monitorizada, e nem se pode dizer que sonhamos. Integramos um imenso organismo que foi perdendo funções vitais, condenado a um processo de hibernação que nos aproxima de um estado vegetativo. Nos primeiros tempos de forçada inacção, e depois de azedarmos de impotência, a consciência só era capaz de produzir pesadelos. E a solução foi induzir quimicamente um sono superficial que não nos deixa mergulhar fundo o suficiente para dar largas ao inconsciente. Antes disto, estávamos sujeitos a permanentes crises de ansiedade, balançando entre os períodos em que nos sentíamos extenuadas, como gatas borralheiras de uma civilização decadente, e aqueles outros momentos de êxtase e aflição, como cinderelas escapando ao ouvir as badaladas da meia-noite. “As rémoras, os ogres, os deuses mais bonitos,/ velam nossa carne como grifos educados”, de acordo com a visão de José Miguel Silva. O processo de transição acabou por não ser de ordem ecológica, mas de consciência. Por motivos de eficiência energética, a maior parte da população acolheu este quadro de hipnose. Não foi preciso simular nenhum processo democrático, pois desta vez realmente já não nos restavam alternativas. A civilização rendeu-se perante o seu próprio ultimato. Mas os intelectuais garantiam que a maioria nem daria pela diferença. O futuro seria como uma longa noite de sono. Como foi que o poeta nos retratou antes de tomar a pílula azul? “E o pior é que chamamos liberdade/ a um tapete que, rolante, já não ouve/ a opinião dos nossos pés; que nos leva/ para onde e anuímos, alheados,/ aos mecânicos desígnios do terror.// Respiramos cadeados, consumimos injustiça,/ damos duas várias voltas ao risonho torniquete/ que nos serve de chapéu; trocamos a cabeça/ por um prato de aspirinas. Os clássicos da vida/ sem tristeza nem remorso (Cinderela,// Varadero, off-shore) iluminam o cenário/ em que dormimos, inocentes como balas/ e nem sei como não somos mais felizes. (…) Neste cerco, viver é uma questão/ de prorrogar o desalento, de iludir/ o infortúnio: cerramos uma porta suicida,/ desatamos a gravata, ficamos satisfeitos/ quando o gelo, na bebida, é de boa qualidade.// Se olhamos para o chão desaparece/ o horizonte; se olhamos para o céu/ ficamos sós. Não percebo como rimos/ quando pedem que posemos para a foto/ de família. Alguém nos enganamos.// Confundidos pelo surto de mentira,/ leiloados pela última hipnose,/ enxertados no pedúnculo da morte,/ semi-envergonhados, de sorriso padecido,/ dizei-me se este rosto de cartão amarrotado,// se esta alma como um campo pedregoso,/ se estes pés adaptados ao espinho,/ se isto que nós vemos é um homem” (José Miguel Silva). Para surpresa dos engenheiros do programa, nos momentos finais, em vez de lágrimas e terror, verificou-se que o termos sido obrigados a dizer adeus ao nosso modo de vida trouxe uma sensação de alívio, e até algum ânimo, pois o que quer que se seguisse pelo menos já seria outra coisa. Fartos da colmeia digital, exauridos por esse regime imparável, se não podíamos recuperar o mundo, mais valia abrir mão de toda essa linha de decepcionantes sucedâneos. Neste episódio, vamos ao fundo da última fase da evolução humana, induzida por essas conexões ininterruptas, por esse quadro de ajustamento mútuo com o ambiente mediático, num imenso e circular sistema nervoso que se limita a processar sequências infinitas e um tanto aleatórias de dados apenas para que a máquina possa aperfeiçoar o seu código. Para nos ajudar nesta descida aos círculos (ou circuitos) do inferno digital, Vania Baldi foi o nosso Virgílio.  

Friday Mar 15, 2024

Hoje tudo nos aparece escaqueirado pela palavra mais fraca, pelas noções mais frágeis, mas que se infiltram e servem como uma razão e um denominador comum para essa massa opaca dos monstros práticos. E se todos anseiam desesperadamente por vencer o impasse azucrinante em que vivemos, talvez hoje fosse politicamente mais relevante se congeminássemos um verdadeiro bloqueio, a construção deliberada de um impasse. Dan Fox, um escritor e músico nova-iorquino, sugere que se possa abrir espaço através de uma cuidadosa deflação temporal, uma vez que o mais difícil parece ser encontrar saídas. Talvez o mais urgente seja suspender a vertigem delirante em que estamos embalados, e então procurar uma solução de compromisso para organizarmos o nosso pessimismo. É um modo de desobediência e resistência, quase bartlebyano, uma recusa em ser produtivo, em acatar as instruções, e não reconhece uma diferença entre o descontentamento ou o mal-estar que se arruma à esquerda ou à direita. Em vez de oposições que sempre se anulam, talvez um acordo que nos ligue do lado da insolência, impertinência, descortesia, truculência, talvez enquanto seres que recusam as habituais tácticas, a moderação e a cautela, preferindo algo de intratável: "prefiro não o fazer". Uma letargia assumida ao ponto de se tornar um elemento claro de desafio, de recusa, ganhando expressão através de interrupções forçadas dos fluxos, seja do trânsito automóvel seja de outras formas de tráfego, e à cabeça desse esmagador enredo financeiro que aos poucos empurra a própria existência para as margens. Greves, boicotes generalizados, todas essas formas de obstrução que funcionariam como as barragens hidroeléctricas, uma forma de capturar as forças até que estas se definam e possam expressar uma vontade menos equívoca. Ainda no rescaldo das eleições do passado dia 10 de Março, mais do que vir para o teatrinho da perplexidade e da indignação da classe de sabujos que a elite mantém nas tarefas de representação do nosso quadro político, interessa-nos prosseguir a análise da extensão absurda do bem-estar cruel que foi promovido e é tão propalado como o nosso "modo de vida". Na verdade, passou há muito a ser um modo de devastação planetária, e em vez de vir com a língua transformada em fada para distrair e provocar cócegas no juízo de quem nos ouve, devemos mostrar como é o próprio ar do tempo aquilo que nos dilacera. A pós-verdade é esse quadro de relativismo para o qual já O'Neill apontava ao falar de um tempo detergente. Voltamo-nos para a cultura e a história no sentido de readquirir uma gramática e certas noções comparativas, e até para voltarmos a saber o que é um ser humano e a desistir de compreender a realidade apenas segundo um regime de semelhanças. No fundo, um bloqueio que exprimisse o mal-estar que hoje é o sentimento mais presente em toda a sociedade seria uma forma de sairmos desta submissão a um regime de eficácia e de aceleração que há muito nos ultrapassou, deixando de corresponder às nossas aspirações. "Participamos no mundo através da opinião, já não através de intervenções, acções e planeamentos", notava o designer Otl Aicher. "Todos vemos o estado deste mundo, todos sabemos que algo tem de ser feito. Mas só escrevemos apelos. Participamos com plena consciência no processo cujo fim é previsível, mas existe o perigo de não podermos fazer nada." Assim, se não é claro qual seja a alternativa, podemos pelo menos concordar que não é "isto", e que é preciso, por todos os meios ao nosso alcance, travar "isto". Por uma vez, é evidente que a destruição adquiriu um evidente elemento salvífico. Para nos ajudar a ler a recomposição do quadro político e dos resultados da passada noite eleitoral, pedimos ao Diogo Duarte, historiador que se tem dedicado a compreender os fulgurantes movimentos anarquistas que chegaram a ter grande peso entre nós, que voltasse a juntar-se a nós para fazermos um exercício de enquadramento e interpretação dos sinais de um ressentimento que deu uma inaudita expressão a um partido oportunista, e que tem sido o único a valer-se desta impotência crítica, criativa e construtiva que resulta da mercantilização radical de todas as esferas da nossa vida.

Friday Mar 08, 2024

É preciso saber andar pelo passado, alimentarmo-nos dele, e não como qualquer coisa morta, mas como matéria que é possível constelar com o presente, reinterpretar, sem repetir os mesmos gestos, caindo na prisão de um encanto mítico. Em tempos, a escrita e a leitura, sendo actividades vagarosas, reconheciam que a tarefa que se nos impunha era avançar para trás, na direcção da coisa desconhecida no interior da própria cultura. Era preciso saber perder o tempo em busca do tempo perdido, e valer-se de toda essa abandonada riqueza. Outros já souberam a palavra que te falta ou que ignoras, outros fizeram a seu tempo os gestos necessários. É preciso saber renunciar à engrenagem diabólica deste tempo, interromper-se, romper com um modelo de educação que passa por imitar até ao ridículo os gestos e a linguagem dos seus antecessores, deixando escapar o elemento transformador das suas acções e escolhas. É preciso renunciar também à nostalgia, uma vez que nela também se escondem o poder, a violência, as velhas hierarquias e valores repressivos. E, no entanto, há essa pequena luz bruxuleante, a das estrelas vencidas, há esses murmúrios distantes nos quais é possível beber outra instrução. É fácil deixar escapar o principal, pois a época impõe sempre o seu pânico, e vem-nos com falsas urgências, os seus índices. Talvez fosse melhor que surgisse de uma vez uma geração que se desse realmente conta de que não tem nada a perder, e essa estivesse por fim disposta a levar a sua consciência e convicções até às últimas consequências. Estamos necessitados de algum grau de radicalismo interior, de uma inquietação profunda diante do mundo, de forma a nos interessarmos pelo abismo deste tempo, pelos desafios próprios da época que nos corresponde. Se não falta por aí esse fácil pessimismo apocalíptico que permite a alguns maestros da retórica viverem em bicos de pés, sempre a conjecturarem cenários para acicatar as nossas inseguranças e medos, o que tem faltado é uma verdadeira vontade de perceber o que possa ser o fim do mundo. Como assinalava Eduardo Viveiros de Castro, pode ser que hoje estejamos a passar pela mesma coisa por que passaram os índios em 1500. "Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos. Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabámos com os índios: com essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais." A pior forma de se confrontar com as coisas é achar que se conhece o problema, não chegar sequer a formular as perguntas, a enquadrar de forma correcta a crise que temos diante de nós. É preciso instigar a dúvida, e para isso, para aprofundar uma reflexão crítica sobre as questões da educação, neste episódio contámos com esse esforço peregrino de Jorge Ramos do Ó, historiador e professor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Alguém que se tem batido para contrariar o regime de sufoco e todos os constrangimentos e as formatações que se colocam nos actuais modelos de ensino, e também de investigação e exploração no quadro académico, denunciando essas forças que tendem para a fixação de sentidos e para a progressiva rigidez dos modos de pensar.

Friday Mar 01, 2024

Para preservar o desejo hoje sentimos uma necessidade de fuga, de escapar aos ambientes onde o vazio é disfarçado com recurso a formas de pirotécnia, a essas redundâncias esterilizantes que tomaram conta dos modos de representação culturais, tendo-se permitido que os alicerces da literatura portuguesa apodrecessem, acelerando o esquecimento sobre o que foi feito antes para que os nossos generais de aviário pudessem beber a consagração até às fezes. Tem sido cada vez mais difícil desenvolver esforços no sentido de dissolver aquela estupidez tradicionalista que se instala como um bolor em torno das figuras que nos serviram magníficos desacatos, contrariando esses facilitismos e fábulas provincianas em que se aquecem os nossos recitadores medíocres. O passado e os mortos resistem às convenções museológicas, e estão ali aqueles artistas que melhor jogaram no sentido da carnavalização das suas próprias identidades, apontando a esse paralisante enredo narcísico que é hoje a primeira estrutura que é nessário demolir se quisermos prosseguir o esforço de desintegrar a realidade maciça e ruidosa que nos tem subjugados. É como se não fôssemos capazes, no curso normal da vida, de nos sabermos o órgão do tempo, os agentes do que se segue. Se queremos propor um recomeço, talvez devêssemos desde logo deixar de lado essa concepção piedosa da cultura, que se impõe sempre como uma forma de castração,  um apelo à resignação infinita, propondo em seu lugar uma concepção positiva e que integre desde logo o imenso mal-estar que sentimos, permitindo elevar o registo dramático, conflitual, e dando expressão até a uma pura raiva contra tudo e contra todos. Por agora, e enquanto essa água morna continua a inundar tudo, resta reconhecer que não temos as condições para propor uma transformação profunda do ambiente ao nosso redor, falta um mínimo grau de solidariedade das consciências quando a própria noção do mundo é algo que nos divide em vez de nos animar a assumir uma busca e uma luta em comum. Os próprios livros parecem referir-se cada vez mais a uma relação que está ausente do viver comum ou que exprime uma nostalgia face a um idealismo ou ingenuidade perdidos. A nossa gramática cultural parece esvaziada de um propósito, impedindo-nos de firmar desejos e metas colectivas, e, assim, tudo parece destinado a desvanecer-se ensaiando poses irónicas ou sarcásticas para essa eternidade demasiado transitória ou degradante. A maior derrota que sentimos, contudo, é que quando alguém fala todos se põem a adivinhar a formulação que lhe irá sair, mas são cada vez menos aqueles que permanecem vigilantes, admitindo que possa ser a imprevisibilidade a falar pela sua voz. Somos assim derrotados pelas nossas próprias expectativas, e fica em causa o sentido mais profundo da amizade, aquela disponibilidade que, segundo Blanchot, passa pelo reconhecimento da estranheza comum que não nos permite falar pelos nossos amigos, mas apenas falar com eles, reservando, mesmo na maior familiaridade, essa distância infinita, essa separação fundamental que abre caminho a uma interrupção do curso mais banal dos dias. Neste episódio, juntou-se a nós Rui Lopo, um assumido "arqueólogo" literário, que se tem dedicado há bons anos a um trabalho de restituição e renovação do diálogo com alguns desses autores que nos deixaram exemplos mais proveitosos e encorajadores, alimentando o estado de vigília, e incitando em nós uma capacidade de avaliar e pôr em crise os símbolos do poder e os seus mais insidiosos condicionamentos.

Friday Feb 23, 2024

Hoje é impossível escapar ao futebol, a essa redução essencial da tragédia a um espectáculo que segrega uma mitologia degradante, cercada de um fervor e de formas de culto alienantes, providenciando uma linguagem que chega a todos, um discurso que invade até o campo da religião, chamando a si termos como catedral, milagre, fé, comunhão, consagração, sagrado, salvação, ressurreição, veneração, inferno, o diabo ou a mão de Deus. À medida que o adepto se torna um fiel, benzendo-se em nome do seu clube, sacrificando-lhe e aos seus ídolos de chuteiras as suas preces, superstições, todos os seus sinais de devoção, por outro lado ganha expressão um regime adversarial através do qual “o medíocre se transforma em herói”, como nos diz Agustina, projectando-se “no furioso trabalho do peito, dos ombros, dos pés”, e resolvendo assim a sua agressividade, que o reduz a uma impotência cada vez maior, a uma cólera que vê na equipa contrária a representação de todos os males, toda a indefinição e bloqueio da sua própria vida. Tudo conspira para que o futebol assuma uma presença que vai muito para além dos estádios, uma ênfase desproporcionada que permite inocular o seu vírus, produzindo nas massas uma reacção coreografada, com as multidões a responderem à chamada, colocando-se em cena e dispondo-se a esse dever do confronto, a essas rivalidades fabricadas, a responderem hipnotizadas ao clarim de guerra. Multiplicam-se por todo o lado os sinais da contemporização face aos excessos a que são levados os adeptos devido ao clima de fervor produzido pelo “ininterrupto matraquear futebolístico do espaço público”, o que conduz a um estado de excepção em que, como sinaliza António Guerreiro, nos submetemos alegremente a essa “continuada violência simbólica, exercida através do empreendimento dos media”.  O futebol surge assim como essa “religião laica do proletariado” (Eric Hobsbawn), na medida em que alimenta uma perspectiva de redenção, em que oferece este regime de intoxicação voluntária, com os fiéis deste culto a permitirem-se essa forma de delírio que, por alguns instantes, lhes permite esquecer o desencantamento da vida moderna, lendo nos caracteres do fenómeno futebolístico espalhados por toda a parte uma articulação para essas aspirações heroicas, uma sentimentalidade e emoção exacerbadas num confronto de alienados. E é esse delírio que permite que tudo seja permitido, e a corrupção se instale e normalize. Assim, à boleia dessa benevolência, a violência é normalizada, o ódio vê-se banalizado e torna-se um elemento chave que permite animar fórmulas de populismo, os nacionalismos xenófobos, os regionalismos atávicos e outras formas de ódios identitários ou racistas, originando “uma regressão cultural generalizada”. Marc Perelman defende que este tem permitido uma inversão das posições políticas tão profunda que, actualmente, “o chauvinismo e o nacionalismo engendrados pelo futebol já não são denunciados, mas postos em evidência como manifestações de uma revitalização dos povos”. Assim, vemos serem encenadas manifestações que nos transportam para uma nostalgia do fervor totalitário, um eixo de representações que preparam as condições para um fascismo de sorte alienante que serve para distrair inteiramente os homens do seu destino. Para nos oferecer alguma perspectiva e também para aprofundar ou reenquadrar algumas destas ideias, neste episódio contámos com a experiência e o conhecimento de campo de Luís Filipe Cristóvão, escritor que teve em tempos actividade como livreiro e editor, e que hoje é jornalista e comentador desportivo. A partir de um espaço mediático densamente povoado pela linguagem do futebol-indústria, Cristóvão tem procurado valorizar a dimensão comunitária e associativa do futebol, bem como arriscar a mobilização de um olhar sobre o jogo que  procure pensar e problematizar as suas relações com a organização social e política.

Friday Feb 16, 2024

Goliarda Sapienza costumava dizer que os mortos deixam de ter razão se depois da sua morte ninguém os defender. Hoje essa advocacia fulgurante e desinteressada tem vindo a degradar-se, uma vez que os vivos estão demasiado empenhados em promoverem-se a si mesmos, a ponto de fazerem tábua rasa da memória e da tradição. Aquela autora italiana estava, ao mesmo tempo, bem ciente de que o tempo hoje é substancialmente antiliterário, e que vivemos num mundo que tende a estar todo cheio, permanentemente ocupado, distraído. Entre nós a única virulência que parece restar ao meio literário é o seu silêncio. Quem não engula a sua hóstia literata nem preste culto aos santinhos de altar ao dispor logo se vê ostracizado. Enquanto isso, culturalmente, o país vive absorvido por tematizações ligeirinhas, constantes inventários e balanços, generalizações supressivas e elencos que se organizam naquele regime do saco de gatos. Em vez de um lugar de tensões e de conflito, de um espaço prospectivo onde possamos desdobrar uma dimensão que não se restrinja às operações promocionais, damos por nós encarcerados nesses dispositivos religiosos da economia, que domina todas as manifestações. Neste ambiente desolador, nada nos deveria empolgar mais do que essa obstinação sempre desfeita, desencorajada, desenfreada com que cada um de nós tenta superar estes bloqueios e impedimentos. Em certo sentido, as obras marcantes da literatura portuguesa estabeleceram sempre uma relação vingativa com o esquema sentimental e moral que as cerca, manifestando a força daquilo que teve de se construir e operar na cladestinidade, contra o conformismo, contra os bonzos de toda a espécie e proveniência. Uma e outra vez, o que estas obras nos lembram é que a promessa de um mundo que começa com uma catástrofe não é necessariamente contraditória. Hoje, a própria esperança é algo que só conseguimos conceber depois de um longo período de devastação. Enquanto leitores, vamos por aí a dar pelos hieróglifos desse tempo que nos espera, criando, a contragolpe, uma espécie de euforia do luto. A escrita foi tida em tempos como a religião das pessoas que não acreditam em nada, que interrogam a sua noite, que se dispõem a mergulhar no desconhecido através do acaso. Num certo sentido, para o processo literário nos ser restituído, talvez o mais importante não seja a síntese, a bela totalidade, a prossecução de um regime unificador, mas operar uma série de profanações, participar pela distorsão, o esquartejamento, valorizando a diferença e a exterioridade em qualquer forma. Neste episódio, e para um diagnóstico mais profundo destas e de outras questões, socorremo-nos de um escritor e crítico literário que se obriga diariamente a fazer um desvio do ofício de neurologista, sendo um desses cada vez mais raros escritores que têm uma série de romances na gaveta, e que não abdicam daquela obstinação sempre desfeita, num tempo em que vivemos cercados de leitores preguiçosos, alheados, muito satisfeitos com os horizontes moles da cultura oficial e patrocinada, e em que os meios técnicos da comunicação e expansão nos condenam a apodrecer enquanto esperamos que chegue a altura de sermos contemporâneos da nossa consciência artística.

Sunday Feb 11, 2024

Este episódio surge como o nosso especial de Carnaval, depois de um convite da Livraria da Lapa,  e com a proposta de lançarmos dois livros de naturezas bastante diversas, ainda que não inconciliáveis, de uma assentada. Se aquela tarde não for relembrada por mais nada, talvez o seja por uns poucos como um encontro num momento de desordenada suspensão, num momento em que, de diferentes formas, procurávamos ainda sobreviver sem nos perdermos numa "atmosfera literária de morna mediocridade", enquanto filhos de uma época merdonha, em que parece cada vez mais difícil vislumbrar a primavera de um tempo vindouro. Quando tudo se combina num efeito meramente cumulativo para nos oferecer essa perspectiva de uma "actualidade" que prescinde da história e da memória, há este receio de tudo estar condenado de antemão a alguma forma de esterilidade ou dissolução, mas este receio é em si mesmo indecente, sendo mais outra forma de cedência à passividade. É indecente porque significa de facto renunciar não só à excelência, mas também à nossa própria verdade, à tentativa de formularmos um ânimo colectivo que seja produtor de novas aberturas ou brechas. É renunciar provavelmente ao único heroísmo que nos resta, e que foi sempre esse esteio, essa força e vitalidade da literatura. Contra um ambiente de sórdida banalização e de fugas que se concertam para nunca coincidirem em nada de substantivo, quisemos encontrar-nos tendo como pretexto o aparecimento de dois livros estranhos, recusando esse regime de aligeiramento na relação com os textos, com a leitura, e que de algum modo estão ligados neste esforço de se aprender a carregar o fardo do destino que nos coube. Afinal, e por mais distracções em que se queira enterrar a cabeça e o juízo, a nossa própria vida segue e impõe-se em si mesma como um problema: como vivê-la? Se nos recusamos a uma exposição auto-celebratória, aos desfiles das belas almas que procuram reduzir a vida literária a mais outro concurso de moralidades hipócritas, por outro lado, também não cedemos a esse esforço de contrabandear como mercadoria proibida a nossa própria consciência. Tendo em conta o abandono e até a violentação pindérica a que os modos próprios da literatura se vêem sujeitos, não abdicamos desse confronto nem aderimos à noção de uma "aura" confeccionada a partir de tudo o que se serve do valor da distância, aquilo que sendo difícil de alcançar se torna belo por isso. "Belo e talvez com um toque de sagrado", diz-nos uma das personagens de Don DeLillo. "E a pessoa que se tornou inacessível adquire uma graça e uma inteireza que é motivo de inveja para os demais." Não estamos nessa. Não adulamos o escritor que ao não mostrar o rosto se convence de que assume assim o papel do demiurgo, invadindo território sagrado. Tanto escritor que, apenas porque deserta, se convence de que nessa suposta marginalidade está a jogar o jogo de Deus e aumenta assim as suas chances de cativar um lugar à mesa da posteridade. Por outro lado, entre o "País Rato", de Jorge Roque, e o "O Anticrítico", deste vosso canalha para todo o serviço, duas edições vindas a lume sob a mesma chancela (Maldoror), naquela tarde tudo estava perto demais da terra para significar outra coisa que não fosse um segredo violento, de tal modo que nos nossos gestos tudo exprimia aquela esplêndida pequenez que é a essência do bairrismo e que está na margem oposta ao ambiente elusivo do espectáculo. Talvez isso possa ser por si mesmo um regime de dissidência auspicioso.

Friday Feb 09, 2024

De algum modo, hoje todos nos sentimos em perda, num luto sem um objecto certo, uma angústia difusa, convencidos de que somos incapazes de extrair um nexo desses dez mil farrapos de desinformação, condenados a alguma forma de neurose. Supomos que a realidade se tornou demasiado intensa, um enxame fervilhante cuja dispersão celular derrota a nossa capacidade de apreensão. A dolorosa imprecisão de todos os diagnósticos atravessa-nos uma e outra vez, desgastando-nos, e só raramente chegamos a compreender que, na verdade, isto não é próprio da realidade, mas de todas essas hipóteses virtuais que sacodem até corromper a consciência. Degrada-nos sentir como o futuro parece corresponder apenas às pretensões daqueles que estão alinhados com as multidões, esses que passam pelos dias cantando o êxtase de tudo aquilo que nos afasta do mundo. Como notou W.H. Auden, “a mais vulgar das torres de marfim é a do homem médio, esse estado de passividade face à experiência”. No sentido oposto, para nos guiar numa descida ao tão ameaçado enredo da realidade, neste episódio recorremos a António Brito Guterres, um sagaz intérprete que se baseia nos registos afectivos para cartografar esses territórios desfalcados, alguém que não se deixou dominar pela volúpia dos conceitos e da teoria, mantendo-se implicado e procurando superar esses instrumentos de análise obtusos que procuram reduzir todas as verdades a meia dúzia de fórmulas, mais ou menos rebuscadas, copiadas, memorizadas, passadas de mão em mão. Num esforço de vencer a perda de escala e de intimidade, este agente que traz os bolsos cheios de uma infinidade de chaves, não se limita a mapear, mas é ele mesmo um cerco à cidade num tempo em que esta parece estar a escapar. São cada vez mais as margens empurradas para uma forma ou outra de clandestinidade, e ele compreende melhor que ninguém que Lisboa ,como qualquer outra grande cidade, não é outra  coisa senão um instrumento de medição do tempo. Não há melhor pessoa para pararmos na rua se quisermos saber com alguma precisão que horas realmente são. Num tempo em que dormimos e comemos imagens, rezamos a imagens, vestimos imagens, é bom podermos seguir alguém empenhado em desenhar um percurso incapturável no meio de nós, sem se perder nem se deixar arrastar por qualquer formigueiro. Um cicerone capaz de lançar a âncora quando todos zarpam atrás de miragens virtuais. Sem  se reconhecer nas imagens dominantes ou nesses quilómetros de delírio que fazem das cidades um feixe do espectáculo que hoje está em toda a parte, Guterres dá-nos a ver o elemento de ruína que se esconde em todos esses projectos mírificos com que nos acenam, descortina os esquemas, expõe esta cidade como uma teia de aranha suspensa sobre um abismo.

Friday Feb 02, 2024

O regresso ao corpo seria a Odisseia dos nossos dias, pelo modo como vivemos dispersos, alheados, infinitamente desgastados, carregando um cansaço crónico, "ou melhor, de cronos", como escreve Joana Bértholo logo no arranque do seu livro mais recente, "O meu treinador". Estamos todos cansados de lidar com o tempo, com as incessantes compulsões a que vivemos submetidos, sentindo a nossa atenção consumida, constantemente aliciada, cativada ou capturada, comprada, subornada, defraudada, pervertida, presa. Como se lê no editorial do mais recente número da Electra, dedicado a este tema, "sem atenção, o mundo torna-se disperso, insustentável e até ausente - e nós dispersos, insustentáveis e ausentes nele". Se houve um movimento da Presença entre nós, o mais honesto seria reconhecer que vivemos hoje o seu oposto, num regime da Ausência, desfocados, incapazes de fixar os nossos próprios contornos, estamos contaminados pelo ruído. Regressar ao corpo seria recalibrar os instrumentos da nossa perseguição ao real, procurando restabelecer uma atenção tranquila e indestrutível. Seria desde logo necessário voltar à condição do principiante, aquele que é capaz de criar aberturas, inícios. De forma a evitar esta aniquilação em que somos coagidos pelos elementos que nos cercam, de forma a retomarmos escolhas e até erros próprios, teríamos de aceitar um largo período de suspensão, sem chegarmos a lado nenhum. Na linha daquilo que desejava Beauvoir, criando um percurso feito todo ele só de pontos de partida, tendo a humanidade em cada homem um novo ponto de partida. "E é por isso que o jovem que procura o seu lugar no mundo de início não o encontra e se sente desamparado, inútil, sem justificação." A nossa convidada neste episódio tem atrás de si um longo e exigente percurso em que foi obrigada a repensar bem os critérios pelos quais era avaliada ou se avaliava a si mesma, percebendo como muitas vezes o que parece um falhanço pode apenas ser a distância errada. Como assinalava Wallace Stevens, a nobreza da poesia “é uma violência interior que nos protege da violência exterior”. Hoje, resgatar a consciência e e possibilidade de definir um destino autónome não exige menos do que uma poética nestes termos. Cabe-nos escapar à guerra de concorrência sem tréguas que é travada em todos os planos, devassando a nossa intimidade, ao ponto de sermos expulsos dela, e perdermos a capacidade de nos defenirmos e também de sentirmos desejo. Nicholas Carr remete-nos para esse entendimento que colocava no início o Verbo, do qual a própria carne deve decorrer. Este autor assume a nostalgia do velho cérebro, isto é, do cérebro literário. Em oposição à distracção a que somos submetidos na época pelos media digitais, a cultura do livro favorece a concentração. O velho cérebro é, segundo Carr, uma mente linear, literária, que foi o fulcro da nossa sociedade, da arte e da ciência. António Guerreiro sintetiza a sua tese, vincando como o acesso a uma quantidade de informação e a experiências inimagináveis até há pouco tempo tem o efeito de alienar "o que temos de mais autêntico, já que os instrumentos entorpecem as nossas capacidades naturais mais humanas e mais íntimas, as do raciocínio, da percepção, da memória e da emoção".

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