Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

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Episodes

Friday Jan 26, 2024

Quando chegar a altura de erguermos o nosso próprio muro das lamentações, em tantos dos bilhetes deverá ler-se a muita pena de não termos feito mais festas, levado mais gente para a cama, talvez porque essa sim parece ter sido uma lição decisiva, a de que não poderíamos levar uma existência artística ficando limitados ao dia, mas deveríamos ter procurado por todos os meios alcançar a vida nocturna da humanidade bem como os seus mitos e símbolos. A embriaguez, o sonho capaz de pôr em causa a realidade do dia vivido e dele extrair certos pedaços, fragmentos bizarros, ordenando-os de forma ilógica num padrão arbitrário. Repetiremos as frases dos nossos mortos que testemunharam plenamente o absurdo, escrevendo-as e enfrentando-as como hieróglifos, tentando chegar ao fundo da sua razão de ser, mas teremos perdido toda aquela experiência que exige algo mais do que a inteligência. Deveríamos ter passado mais tempo a contar uns aos outros os nossos sonhos, a recriá-los, reconhecendo que nada na arte, nem mesmo os mais inspirados mistérios da música, é capaz de igualar os sonhos. Talvez só a exuberância das celebrações dionisíacas tenham permitido lançar as nossas sombras para lá dessa linha que delimita o campo do possível. Seria bom se tivéssemos escavado algum "covil de piratas, feito de pessoas que sabem desfrutar dos seus últimos momentos de liberdade, flores que sabiam durar apenas umas breves horas". Mas estamos dominados pela ânsia da duração, e a luz artificial é de tal modo constante que não chegamos a acostumar os olhos às trevas, a aprender a ler essas subtis variações do negro. Neste episódio, retomamos a indagação sobre os desastres que nos aguardam antes de ser tempo de reclamarmos de volta a condição política. Relembramos as palavras de Georg Büchner  numa carta à família, assinalando como nos últimos tempos aprendera que "só a inevitável miséria das grandes massas pode produzir transformações e que qualquer agitação ou grito de indivíduos isolados não passa de estéril obra de loucos". E acrescenta: "Se escrevem, ninguém os lê; se gritam, ninguém os escuta; se agem, ninguém os ajuda... Não estou disposto a meter-me em jogos revolucionários infantis, nem na política de intrigas imperante". É um retrato do vazio em que nos sentimos afundar por estes dias. Por demasiado tempo acreditámos que seria possível opor algum tipo de resistência virando costas, perseguindo alguma fantasia até aos limites da realidade, mas não demorou muito até que nos víssemos circunscritos a um sótão qualquer, cercados de um museu desmazelado onde pululavam velhos manequins fantasmagóricos de uma loja de modas com um tal cheiro a mofo que este se introduziu nos nossos sonhos ao ponto de até neles termos dificuldade em respirar. Dos nossos sofás gastos vamos assistindo à bancarrota de todas as instituições da alegada maturidade emocional, como nos diz Luhuna Carvalho. Mas o mais difícil é imaginar o que seria capaz de nos fazer despir esta velha carcaça e sentir de novo o desejo de dançar com os outros. Acolhidos na sala deste cicerone marcial, quisemos explorar um outro tipo de constituição moral, começando por fundar de novo o conteúdo da ideia de "amizade". E a partir daí, aproveitando o balanço e a audácia desafiadora dos Houthis, pudemos lançar-nos a supor novos mundos em vez dos velhos. E aqui bem podemos guiar-nos pelo fervilhante onirismo de Joyce ao vislumbrar uma "união de todos, judeus, muçulmanos e gentios. Três acres e uma vaca para todos os filhos da natureza. Carros funerários-salão motorizados. Trabalho manual obrigatório para todos. Todos os parques abertos ao público dia e noite. Lava-loiças eléctricos. (...) Amnistia geral, carnaval semanal, com licença de máscaras, bónus para todos, esperanto a fraternidade universal. Não mais patriotismo de esponjas de bar e impostores hidrópicos. Dinheiro livre, amor livre e uma igreja laica livre num estado laico livre."

Wednesday Jan 17, 2024

Querem convencer-nos de que estamos encurralados na estação morta e que daqui não há saída, que não nos resta alternativa senão seguir adiante e acatar os maus modos e destratos da época que nos calhou viver. Enquanto isso, enquanto prosseguem na sonegação dos melhores espíritos desta geração, garantem-nos que o problema é que nos falta o génio e a invenção ou o grau de empenho necessário. Pintam-nos como um bando omisso, ou então assemelhando-nos a uma multidão de palhaços miseráveis, abandonados na ponte, olhando para baixo, para o nosso circo submerso. E alguns acreditam que somos só isto. O retrato degradante que nos fazem. Querem-nos trancados diante de espelhos que deformam cada gesto, servindo-nos como eco e reflexo essa forma fantasmagórica que se ergue dentro de alguma jaula. Se abrimos a boca os velhos olham-nos como se tivéssemos disparado uma arma contra o seu silêncio. Conseguimos ouvir a ferrugem a descascar os ossos deles, e a chuva e o frio a atravessar-lhes as correntes sanguíneas, deixando por vezes que irrompa por um momento nos seus olhares moribundos. Continuam a censurar-nos considerando que não estamos adequadamente vestidos para um funeral. E tudo por aqui são funerais. Parece que estão ali desde sempre, colados aos bancos de madeira. Ninguém se lembra sequer de os ter visto de pé, andando por aí. Estão ali todos os dias, todas as semanas, todos os anos, fumando ou mascando seja o que for, tagarelando invariavelmente sobre as politiquices e fingindo que decidem o que fazer com o país. Do país só ouvimos rangidos, como os de um imenso navio fantasma atravessando vagas que nem lá estão. Encalhou há muito. E o tal mar português também  deixou de existir. Ninguém o olha e consegue acreditar que seja ainda uma criatura viva, lembrando apenas um fóssil imperturbado pelo desenrolar da eternidade. Para nos distraírem, muitas vezes têm lojas perto dos cafés com letreiros afixados onde se pode ler: "Vendem-se canários". Mas, entrando, damo-nos conta de que o pipilar que se ouve não passa de uma gravação. Passa-se algo semelhante com todos os sinais de vida que exibem. E é a partir disto que é suposto que cada nova geração recomponha o passado. Ora, como nos diz John Dos Passos, que tinha antepassados lusos, "em tempos fáceis, a história é uma espécie de arte ornamental, mas em tempos de perigo somos levados ao registo escrito por uma necessidade premente de encontrar respostas para os mistérios de hoje. Em tempos de mudança e de perigo, quando há uma areia movediça de medo sob a racionalidade humana, uma sensação de continuidade desde gerações passadas pode estender-se como tábua de salvação através do presente assustador e levar-nos a ultrapassar esse engano idiota, que bloqueia o bom pensamento, que é o de que o 'Agora' é incomum". Roubam-nos o dia de amanhã aldrabando os registos sobre o que se passou ontem. Por isso insistimos em criar um catálogo de exemplares raros e que eles tentam por todos os meios fumigar e exterminar. E desta vez, com José Smith Vargas, deixamo-nos levar pelo seu traço nervoso e mordaz, pelo seu modo de se esquivar a impressões gastas, captando a incerteza ao desenhar e escrever uma crónica das transformações a que têm sido sujeitas as próprias cidades onde vivemos, rejeitando conclusões apressadas, agarrando os elementos espectrais de vidas interrompidas ou sufocadas pelo triunfo dos valores especulativos e a fragilidade que da própria existência fez apenas os termos de um negócio.

Tuesday Jan 09, 2024

É das poucas liberdades exaltantes que ainda nos restam, a de nos demorarmos a divagar rente às feridas e às transformações, e de nos desfazermos de inúteis particularidades para mergulharmos no que é comum. Também os homens formaram bandos, numa firmeza de assalto capaz de fazer da realidade outra coisa, e houve aqueles que só entendiam a sua força enquanto partículas elementares: "Nós nascemos vários e morremos um só." É um ideal que soará demasiado estranho aos deste tempo, mas restam ainda sinais, trechos crepusculares num registo delirante, testemunhos que persistem nos muros expectantes, erodidos pelas paixões mais graves. Aí podemos ler listas de herdeiros e inimigos que foram assentando esses notários inconscientes. A conversação é a única forma de arte que nos lança na direcção do que é comum, e temos então essa tarefa de conspirar como quem trabalha numa inteligência rumorosa, cumulando experiências, ultrapassando o desastre do isolamento, todos esses constrangimentos sociais que funcionam como subtis formas de repressão. "Naturalmente não é a primeira vez que os homens se vêem perante um futuro materialmente sem saída", lembrava Camus, mas se tinham essa voz comum que lhes permitia dispersar certos receios, se os desafiavam através da palavra e do grito, hoje a nossa fragilidade vem precisamente de nos faltar um caminho para essa relação mais aberta, nutrindo-se desse vigor ardiloso. Diz-nos Camus que estes homens "apelavam para outros valores, que lhes transmitiam esperança". Pelo contrário, "hoje, já ninguém fala (a não ser os que se repetem), porque o mundo nos parece guiado por forças cegas e surdas, incapazes de ouvir os gritos de alerta, os conselhos ou as súplicas. Algo em nós foi destruído pelo espectáculo dos anos que acabámos de passar. E essa coisa é a eterna confiança do homem, que sempre lhe fez crer que podia obter de um outro homem uma reacção humana, desde que lhe falasse a linguagem da humanidade. (...) Vivemos asfixiados no meio de pessoas que crêem ter absoluta razão, seja nas máquinas, seja nas ideias que têm. E para todos os que não podem viver privados de diálogo e de amizade humana, um tal silêncio é o fim do mundo.” Por isto mesmo, por sermos frágeis, e por nos recusarmos a tentar tirar sentido de uma sucessão de acidentes, e assumir um orgulho patético por uma individualidade que se distingue dos outros por ninharias, falamos, revezamo-nos ao longo da muralha. A verdadeira resistência começa pelo mais simples, por se recusar a integrar esse logro em que vão sendo promovidos certos indivíduos, lacerados, exilados, condenados, tentando sobrepor-se aos seus conflitos e à sua solidão perseguindo a louca imagem da unanimidade. Têm necessidade dela para substituir os sinais que não foram inscritos na sua carne, os hábitos que não lhes foram dados, os caminhos que não foram abertos para eles, em resumo, para viver. Precisamos desse outro excedente da espécie humana, dessas improvisações fulgurantes que vão reescrevendo uma antologia perpétua das melhores noções ao nosso dispor. Neste episódio contámos com a disponibilidade de Miguel Faria Ferreira, um tipo que sabe das leis o suficiente para se alforriar e ir contemplar o outro lado da vida, um viajante que tem buscado conhecer o que é do mundo para lá desse regime mais linear e frívolo dos que julgam escapar à sua insignificante pessoa exibindo repugnância por tudo quanto lhes parece estranho.

Thursday Jan 04, 2024

Se o nosso tempo não nos diz puto, todos os dias parecem ser domingo neste povoado à beira-mar e que eles se esqueceram de bombardear. Era mais ou menos isto que ouvíamos de uma dessas canções da nossa adolescência, e de algum modo batia certo, pois a sensação de desenraizamento deixa margem a uma estranha ânsia de aniquilação. É isso o que secretamente desejávamos quando se falava num ano novo: que se pudesse limpar com um pano molhado aquilo que ficou escrito no quadro, essas noções limitadas e desidratadas que nos obrigavam a decorar. Hoje faz-nos rir todo o tipo de imbecilidades com que eles nos martirizavam, e parece que até esse passado, com as suas estruturas inquestionáveis e misteriosamente harmónicas, se encontra destroçado e a ruir diante dos nossos olhos. E, no entanto, nem isso nos alivia da ansiedade histórica com que vivemos. É ridícula a ideia de se acolher numa data específica uma ideia de renovação, um futuro refeito de todas as decepções que carregamos, e sobretudo fazê-lo segundo um sistema de registro completamente arbitrário. Mesmo depois de ultrapassarmos a esperança, que foi durante muito tempo a nossa principal fraqueza, o problema com as datas em geral, as epoquizações e balanços que fazemos, é que não podemos programar os nossos apocalipses. A 1 de janeiro de 1916, Gramsci publicou uma coluna intitulada "Odeio o dia de Ano Novo" no jornal oficial do Partido Socialista Italiano, "Avanti!" Começava assim: "Todas as manhãs, quando desperto de novo  sob o céu nublado, sinto que para mim é dia de Ano Novo. É por isso que detesto estes anos novos que caem como prazos vencidos, que transformam a vida e o espírito humano numa empresa comercial, com o seu saldo final bem arrumado, os seus montantes pendentes, o seu orçamento para a nova gestão. Fazem-nos perder a continuidade da vida e do espírito. Acabamos por pensar seriamente que entre um ano e o outro há uma pausa, que começa uma nova história; tomamos resoluções e arrependemo-nos da nossa irresolução, etc., etc." As datas que assinalamos, no entender de Gramsci, não passam de "penas de prisão espiritual" que nos foram impostas pelos "nossos tolos antepassados". Tornaram-se "invasivas e fossilizantes", forçando a vida a repetir séries de "ritmos colectivos obrigatórios". Era bom que a desculpa de um ano novo pudesse servir para fechar esse parêntesis da imbecilidade mascarada de civilização, da anemia mascarada de fulgor, e servisse para forçar um intervalo, um período de suspensão e exame crítico, ou até um exorcismo. Dos milhares de acontecimentos que sobrevêm todos os anos nunca poderia resultar uma harmonia perfeita, empurrando no mesmo sentido. Mas cada vez são mais as coisas que não foram digeridas, e que se guardam em nós de forma atropelada, gerando uma sensação de impotência ou indisponibilidade. Prisioneiros de um regime de aceleração maníaca, só o exorcismo revelaria uma reacção em força perante esta forma de possessão. Mas se esperamos dos intelectuais com banca e atestado, dos críticos e demais panegiristas profissionais que se ocupem destas tarefas, estamos bem lixados. Contudo, há uma indisposição geral que parece abrir margem para a organização do nosso pessimismo. Na Cidade cosmopolita, há focos de desordem, a inquietação respira-se no ar, como no poema de Cavafy: "E porque não vieram hoje, aqui, como é costume, os oradores/ para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?/ Porque os bárbaros é hoje que aparecem,/ e aborrecem-se com eloquências e retóricas." Ainda não chegámos aí, é claro. Mas já alguns viram costas à família, e se mostram dispostos a assumir a felicidade da derrota, a felicidade de ter de recomeçar tudo de novo. Neste episódio recebemos João Oliveira Duarte para nos ajudar na busca desse efeito libertador, a concatenar juízos severos para nos furtarmos à desgraçada benevolência de um tempo que se agarra a esses rituais e ritmos colectivos na tentativa de adiar a promessa aniquiladora deste tempo.

Thursday Dec 28, 2023

Dantes os pássaros alimentavam-se da carne dos capitães que morriam do outro lado do mundo. Dados como perdidos, a sua lenda desfazia-se em migalhas sustendo esses seres que não têm começo nem fim. A vida aproveita-se deles como de mais nenhuma outra imagem. Esses bandos, tomando o ar do seu canto, deixando ao vento um ar de espanto. E ensinam-nos tanto que, vislumbrando o seu Cabo Finisterra, Manuel de Castro anotou isto: “Tudo tomou rumo diferente do previsto/ – pouso as mãos nas asas quebradas dos pássaros/ de quem o sentido inútil se fez vida.” Nalgum momento, um homem há-de olhar siderado, pela última vez, um pássaro cruzar os céus. Não há outro resumo tão intenso, sendo que foi nos pássaros que tanto buscámos compêndios da vida. Nascidos sem lei nem forma, como aparas, sobras que ficaram espalhadas pela mesa de trabalho, e que aos poucos desataram a tremer de uma agitação inexplicável, lançando-se no assalto das distâncias. Fala-se da descuidada juventude deles, por facilidade sugere-se o seu exemplo para falar da inocência. Mas é mais atento compreender como legislam em segredo essas assembleias, decretos regulando em detalhe o que se liga às proporções inestimáveis. Contabilistas dos deuses, os pássaros são antes de mais uma ordem de medida, e também uma linguagem cujos signos e o próprio sentido se extraem a partir de um movimento incessante. A propósito de outra coisa, alguém notava que o mundo é um texto em movimento que deve ser decifrado através de textos em movimento. É isto o que são os movimentos dos pássaros, em bandos ou isoladamente. Uma escala para se reconhecer os elementos de harmonia e essas formas de ruptura que sinalizam as sórdidas fantasias e os degenerados cálculos daqueles que se acham em posições de poder. Andreia Farinha, no seu trabalho enquanto encenadora e dramaturga, há muito que mergulhou nesses elementos que permitem interpretar os pássaros como caracteres de uma outra relação com a História. Uma abordagem que passa desde logo por desmistificar o carácter épico desta. Também lhe interessa cortar com a visão sentimentalista da natureza, esta que elege os pássaros como emissários de uma “primavera sem fim”. Ao propor uma história política das aves, lembra que quando Hitchcock encena em Birds (1963) um motim dos pássaros, resgata o tema da sua aura suprapolítica e bucólica para nos assombrar com a complexidade insólita da nossa história, uma história que também é, e muito, interespecífica. À frente de uma estrutura teatral como a Truta no Buraco, num desacordo formidável com o que nos é servido nas casas reais da cultura lusa, abre caminho a pesquisas a partir de “histórias completamente absurdas”. 

Friday Dec 22, 2023

Nas vésperas deste episódio, o Frederico tomou-se de um febrão daqueles que até os ossos amolecem, e que excitam o tipo de delírios que depois não se podem reproduzir, assim, amarrado à cama como um possuído, desta vez deixou o lugar ao Fernando Ramalho, espécie de Robinson destas saídas à cata do inesperado. Numa altura em que só precisamos de uma rajada mais forte para cair da muralha, abandonar a meio o turno, aí onde cumprimos funções face a um regime cada vez mais precário, cada vez mais sórdido, e que ainda assim nos vai extorquindo o dia seguinte, onde vamos buscar a música suficiente para dançar a vida é a estes encontros em que a angústia comum encontra ânimo de modo a superar esse vazio a que nos dizem destinados. Aporrinhados pelas obrigações destes dias, acabámos por falar em Cristo, mas sem nos juntarmos a algum coro de Natal, e em vez de uma missa do galo, esta missa deu numa cabidela dos diabos. É o 33.º episódio, são já tantos quantos os anos daquele que foi daqui, meio esburacado, e que hoje vai sendo usado pelos da "família" mais para dissuadir outros da via da paixão, que é sempre radical. E desta vida que anda tão difícil mesmo só de levar com ela, alguns perguntam-se: Para onde havemos de sair se em nós já não há uma suficiente soma de delírio? Talvez o sacrifício e a morte sejam hoje tudo aquilo que de uma verdadeira religião ainda nos resta. Mas isto não tem necessariamente de nos levar ao desespero. Como disse um sábio desses sem grande saída nos nossos dias: "Um homem (que vive com a ideia da sua morte) não deseja absolutamente nada porque adquiriu um apetite silencioso pela vida e por todas as coisas da vida. Sabe que a morte não lhe dará tempo para se agarrar ao que quer que seja, e isso faz com que, sem sentir um desejo obsessivo por nada, tente a totalidade de todas as coisas." Em busca de um alento e de uma experiência de recusa, virámo-nos desta vez para Maria Lis, poeta e educadora no sentido mais lato e inquietante do termo, alguém que acaba de ter a sua estreia com o livro "Turbulenta Forma", que traz uma frescura regeneradora a este género já tão cansado, alguém que se habituou a desdobrar o espaço, e que anda muito, muito mesmo, enquanto nos canta coisas que vão do embale ao desarme em menos de nada.

Wednesday Dec 13, 2023

A promessa de um mundo que começa com uma catástrofe não é necessariamente contraditória, e, no entanto, o futuro ainda só parece fazer-se sentir à distância, e alcança-nos por meio de vislumbres, como um pressentimento. Entretanto, enquanto tudo ao nosso redor lhe resiste, é possível folhear um caderno e ler sobre as variações possíveis do que nos espera. Muito do que está em causa exige de todos um pesado sacrifício e, por isso, uma coragem que terá de ser inventada de novo. Pasolini dizia isto a esse respeito: "Penso que é necessário educar as novas gerações para o valor da derrota. A lidar com ela. Na humanidade que dela emerge. Na construção de uma identidade capaz de perceber uma comunidade de destino, na qual é possível falhar e recomeçar sem afectar a coragem e a dignidade. Em não ser um alpinista social, em não pisar o corpo dos outros para chegar primeiro. Neste mundo de vencedores vulgares e desonestos, de fazedores falsos e oportunistas, de eminências que ocupam o poder, que escamoteiam o presente e nem se fala do futuro, de todos aqueles que têm a neurose do sucesso, da fama, de se alcançar uma posição. Perante esta antropologia do vencedor, prefiro de longe o perdedor". Sobre estes dias que correm dominados pelo absurdo pouco resta a dizer, e talvez não tenhamos para eles outra coisa senão "últimas palavras", como nos diz o poema de Ivan Junqueira: "Eis enfim o que expressa/ a boca que se fecha:/ uma praga, uma prece,/ algo de ermo e secreto,/ o asco aos vermes do verbo." Não há como seguir outro caminho que não passe por virar costas ao vivido, buscar por todos os meios uma ruptura, alimentar-se do próprio desespero. A grande questão é saber que luzes ainda nos servem de orientação. E mesmo em relação ao que está por vir, temos de nos questionar se o mundo será capaz de ouvir o que nunca lhe foi dado ouvir, se admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado perante o que nunca imaginou. Por agora, como nos diz Álvaro Domingues, "faltam as palavras para ficcionar os acontecimentos que se sucedem em séries truncadas que não deixam ver para a frente. E sem ficções, a realidade é como um labirinto de acontecimentos a que falta um modo de apresentação, um encadeamento. Repetem-se as mesmas histórias, somam-se quantidades, procuram-se outras geografias para repisar os mesmos casos, as mesmas imagens, os mortos, os aflitos..." Neste episódio, foi para este geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto que nos virámos. Este explorador do que já se julga conhecido, e que se tem especializado em desarrumar conceitos, desmanchar termos e noções demasiado vagas, abstractas. Um pensador para quem o desafio passa por não abrir mão das nossas dúvidas e suspeitas, não embarcar, não aderir às comunidades de pregar com pregos as partes mais vulneráveis da matéria. 

Wednesday Dec 06, 2023

No Telhal ninguém lê Camões, e é pena. Talvez fizessem mais sentido dele. Cá fora os usos que se lhe dão, diga-se de passagem, também não são melhores. Até nos vícios já fomos mais sinceros. Já bebemos com outra honestidade, exactamente por nos sabermos sem escapatória, desertávamos intimamente pondo-nos a inventar com uma ferocidade que por estes dias tem andado desaparecida. Por indisposição do olhar e consequente nervura no pensamento, o nosso sentido de aproveitamento da realidade parece ter metido baixa, sofre de ansiedade, vertigens do camandro. As propostas que chegam entre as persianas não são demasiado tentadoras, por isso desta vez nos recolhemos a atirar conversa fora, com Nunes da Rocha, poeta de asa sofrida, que nos “diz uma pilhéria/ dá um peido em décimas/ e depois/ arremete caga-lume/ da noite ao Sol”. É dos últimos que foram revelando esse talento de andar a monte, e vai por aí fora, pelas províncias do pânico face ao mundo, com o Lima o Ângelo mailo Gancho António. Corre os balcões dando corda a uma fantasia turva, sem inchaço moral ou calo histórico, com palito nos dentes e asco a olear mecanismo no tasco. Há por aí demasiada conversa dominical, e o que procurámos foi fugir-lhe seguindo o poeta aos trambolhões por um lugar onde acabam comboios com ferrugem e destreza. O próprio Nunes da Rocha é uma espécie de longa composição, de gente que se esqueceu do destino que levava, uma comunidade que desandou a dar ao pedal. Entre as suas penas, se nos pusermos à espreita, dá para catar muita dessa gente, e apetece citar Albert Cossery nas suas Cores da Infâmia: "Impermeável ao drama e à desolação, esta chusma de gente carreava uma espantosa variedade de personagens pacificadas pela sua ociosidade; operários sem trabalho, artesões sem clientela, intelectuais desinteressados da glória, funcionários administrativos expulsos das repartições por falta de cadeiras, diplomados das universidades vergados ao peso da sua ciência estéril, enfim, os eternos trocistas, filósofos amorosos da sombra e da quietude que dela emana, para quem a deterioração espectacular da sua cidade tinha sido especialmente concebida para lhes aguçar o sentido crítico."

Thursday Nov 30, 2023

O mundo (este ou outro qualquer) é o conjunto de imagens-tendências projectadas a uma mesma velocidade, essa a que o olho humano se pode adaptar, captando-a, do mesmo modo que um receptor de rádio conectado a uma determinada frequência capta modulações que constroem sentido nessa banda sonora. Mas se hoje tudo começa a parecer-nos excessivo, se há ruído demais na frequência, se as imagens se atropelam e nos dão uma perspectiva grande demais para ser abordada, acabamos por nos sentir humilhados. É tão difícil provocar mossa. Em qualquer direcção que se olhe, perde-se a vista. E, à medida que a História se abre com a paisagem, também o tempo se torna uma dificuldade. Só pela contenção se consegue recuperar o ritmo, e pelo verbo já se vai à algum lado. Como o Nemésio dizia: "Nomeei as coisas e fiquei contente:/ Prendi a frase ao texto do universo." Se há tantos modos de ganhar balanço, não se pode esquecer como só fazemos sentido do mundo por meio de cortes. O próprio mundo fazemo-lo cortando, aplicando inumeráveis cortes no infinito. Colhemos um pedaço, abrimo-lo em gomos e, com a paciência de o mastigar e digeri-lo damo-nos conta do que temos ao nosso redor, esse cerco que só parece arbitrário. É preciso tomar o impulso como direcção, como sentido, ir atrás, fazer-se cúmplice. Emprestar-se ao que nos surge, sentir o puxão disto ou daquilo, rastreá-lo, refazer o contexto. Ir ao Padre António Vieira espantar-se, quando essa era a função dos que falavam em nome de outros mistérios: "que admiráveis transformações de formosura faz invisivelmente a morte debaixo da terra! Os químicos não acharam até agora a pedra filosofal, porque não fizeram ensaio nas pedras de uma sepultura. Falando Deus a Abrão na gloriosa descendência de seus filhos, umas vezes comparou-os a pó, e outras a estrelas, para ensinar — diz Filo — que o caminho de se fazerem estrelas era desfazerem-se em pó. Que cuidais que é uma sepultura, senão uma oficina de estrelas? Ainda a mesma natureza produz maiores quilates de formosura em baixo que em cima da terra." Numa época que tudo faz para nos siderar ao mesmo tempo que nos torna míopes, projectando sobre nós essa "luz inextinguível que tudo aclara, mas nada revela", uma "luz mais escura que a treva", ainda nos serve de alguma coisa lançar o olhar para o firmamento, encantar-se pelo que nos é longínquo, seguir hipóteses mirabolantes e penetrar a névoa do futuro. Desta vez, contámos com a serena intrepidez de Rui Lage, poeta e ensaísta, deputado socialista, um tipo que tem sabido esquivar-se ao cinismo e manter uma postura tão discreta  quanto empenhada, segurando a frequência, construindo um sentido claro, sem deixar de ser abalado por este tempo, pelos desafios que impõe.

Thursday Nov 23, 2023

Traficantes de sinais que persistem entre a escória de cada época, cabe aos livreiros um papel fundamental nas operações de resgate e nesse cultivo de uma esperança que, ao contrário do que se pensa, não nasce de uma visão tranquilizadora e optimista, mas de uma laceração da existência vivida e confrontada depois de se lhe arrancar todos os véus. É precisamente isto o que gera uma irreprimível necessidade de resgate. A esperança é, afinal, um conhecimento completo das coisas, e não apenas de como surgem e são, mas também daquilo em que têm de se converter para se conformarem com a sua realidade mais plena. Aprendemos com os livreiros a respeitar um convívio num tempo mais largo, a reconhecer como há em cada realidade outras potencialidades que podemos explorar além do cárcere do nosso tempo. Como nos diz Claudio Magris, o verdadeiro desencanto é uma forma irónica, melancólica e aguerrida da esperança. O desencanto, que corrige a utopia, reforça esse seu elemento fundamental, que é a crença na possibilidade de, mesmo quando não nos é possível transformar o mundo, existir margem para mudar a vida. Se uma voz nos diz que a vida não tem sentido, é possível encontrar por vezes no seu timbre profundo o próprio eco desse sentido. Essa é a forma de persistência de algumas obras, sendo próprio da poesia essa capacidade de representar as contradições sem resolvê-las conceptualmente, mas compondo-as numa unidade superior, elusiva e musical. Continuamos a dar corda à epopeia que nos resta, sabendo que faz parte dessa busca ir recuperando forças nas poucas livrarias que escapam ao modelo de grande superfície franchisada, aquelas cujas prateleiras não estão ocupadas pelo ranço daquilo a que os vendedores chamam novidades. Depois de uma larga temporada no Largo da Misericórdia, antes de Lisboa se ter transformado em mais outro inferninho turístico, depois de dois anos na Avenida Elias Garcia, aquele que é um dos nossos livreiros mais empenhados nesse tráfico galante aceitou o convite de José Pinho e ocupa, desde há uns anos, o espaço de uma antiga adega, em Óbidos. Um generoso covil na província, onde Luís Gomes deixa que o tempo afine uma ideia de eternidade, que, longe de ser um bairro de deuses, é antes um modo de extravasar todos os vasos, qualquer forma mimando o seu descanso, é uma inquietação essencial, em todos os sentidos, em todas as direcções.

© 2024 Enterrados no Jardim

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