Enterrados no Jardim
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
Episodes

Wednesday Dec 06, 2023
Wednesday Dec 06, 2023
No Telhal ninguém lê Camões, e é pena. Talvez fizessem mais sentido dele. Cá fora os usos que se lhe dão, diga-se de passagem, também não são melhores. Até nos vícios já fomos mais sinceros. Já bebemos com outra honestidade, exactamente por nos sabermos sem escapatória, desertávamos intimamente pondo-nos a inventar com uma ferocidade que por estes dias tem andado desaparecida. Por indisposição do olhar e consequente nervura no pensamento, o nosso sentido de aproveitamento da realidade parece ter metido baixa, sofre de ansiedade, vertigens do camandro. As propostas que chegam entre as persianas não são demasiado tentadoras, por isso desta vez nos recolhemos a atirar conversa fora, com Nunes da Rocha, poeta de asa sofrida, que nos “diz uma pilhéria/ dá um peido em décimas/ e depois/ arremete caga-lume/ da noite ao Sol”. É dos últimos que foram revelando esse talento de andar a monte, e vai por aí fora, pelas províncias do pânico face ao mundo, com o Lima o Ângelo mailo Gancho António. Corre os balcões dando corda a uma fantasia turva, sem inchaço moral ou calo histórico, com palito nos dentes e asco a olear mecanismo no tasco. Há por aí demasiada conversa dominical, e o que procurámos foi fugir-lhe seguindo o poeta aos trambolhões por um lugar onde acabam comboios com ferrugem e destreza. O próprio Nunes da Rocha é uma espécie de longa composição, de gente que se esqueceu do destino que levava, uma comunidade que desandou a dar ao pedal. Entre as suas penas, se nos pusermos à espreita, dá para catar muita dessa gente, e apetece citar Albert Cossery nas suas Cores da Infâmia: "Impermeável ao drama e à desolação, esta chusma de gente carreava uma espantosa variedade de personagens pacificadas pela sua ociosidade; operários sem trabalho, artesões sem clientela, intelectuais desinteressados da glória, funcionários administrativos expulsos das repartições por falta de cadeiras, diplomados das universidades vergados ao peso da sua ciência estéril, enfim, os eternos trocistas, filósofos amorosos da sombra e da quietude que dela emana, para quem a deterioração espectacular da sua cidade tinha sido especialmente concebida para lhes aguçar o sentido crítico."

Thursday Nov 30, 2023
Thursday Nov 30, 2023
O mundo (este ou outro qualquer) é o conjunto de imagens-tendências projectadas a uma mesma velocidade, essa a que o olho humano se pode adaptar, captando-a, do mesmo modo que um receptor de rádio conectado a uma determinada frequência capta modulações que constroem sentido nessa banda sonora. Mas se hoje tudo começa a parecer-nos excessivo, se há ruído demais na frequência, se as imagens se atropelam e nos dão uma perspectiva grande demais para ser abordada, acabamos por nos sentir humilhados. É tão difícil provocar mossa. Em qualquer direcção que se olhe, perde-se a vista. E, à medida que a História se abre com a paisagem, também o tempo se torna uma dificuldade. Só pela contenção se consegue recuperar o ritmo, e pelo verbo já se vai à algum lado. Como o Nemésio dizia: "Nomeei as coisas e fiquei contente:/ Prendi a frase ao texto do universo." Se há tantos modos de ganhar balanço, não se pode esquecer como só fazemos sentido do mundo por meio de cortes. O próprio mundo fazemo-lo cortando, aplicando inumeráveis cortes no infinito. Colhemos um pedaço, abrimo-lo em gomos e, com a paciência de o mastigar e digeri-lo damo-nos conta do que temos ao nosso redor, esse cerco que só parece arbitrário. É preciso tomar o impulso como direcção, como sentido, ir atrás, fazer-se cúmplice. Emprestar-se ao que nos surge, sentir o puxão disto ou daquilo, rastreá-lo, refazer o contexto. Ir ao Padre António Vieira espantar-se, quando essa era a função dos que falavam em nome de outros mistérios: "que admiráveis transformações de formosura faz invisivelmente a morte debaixo da terra! Os químicos não acharam até agora a pedra filosofal, porque não fizeram ensaio nas pedras de uma sepultura. Falando Deus a Abrão na gloriosa descendência de seus filhos, umas vezes comparou-os a pó, e outras a estrelas, para ensinar — diz Filo — que o caminho de se fazerem estrelas era desfazerem-se em pó. Que cuidais que é uma sepultura, senão uma oficina de estrelas? Ainda a mesma natureza produz maiores quilates de formosura em baixo que em cima da terra." Numa época que tudo faz para nos siderar ao mesmo tempo que nos torna míopes, projectando sobre nós essa "luz inextinguível que tudo aclara, mas nada revela", uma "luz mais escura que a treva", ainda nos serve de alguma coisa lançar o olhar para o firmamento, encantar-se pelo que nos é longínquo, seguir hipóteses mirabolantes e penetrar a névoa do futuro. Desta vez, contámos com a serena intrepidez de Rui Lage, poeta e ensaísta, deputado socialista, um tipo que tem sabido esquivar-se ao cinismo e manter uma postura tão discreta quanto empenhada, segurando a frequência, construindo um sentido claro, sem deixar de ser abalado por este tempo, pelos desafios que impõe.

Thursday Nov 23, 2023
Thursday Nov 23, 2023
Traficantes de sinais que persistem entre a escória de cada época, cabe aos livreiros um papel fundamental nas operações de resgate e nesse cultivo de uma esperança que, ao contrário do que se pensa, não nasce de uma visão tranquilizadora e optimista, mas de uma laceração da existência vivida e confrontada depois de se lhe arrancar todos os véus. É precisamente isto o que gera uma irreprimível necessidade de resgate. A esperança é, afinal, um conhecimento completo das coisas, e não apenas de como surgem e são, mas também daquilo em que têm de se converter para se conformarem com a sua realidade mais plena. Aprendemos com os livreiros a respeitar um convívio num tempo mais largo, a reconhecer como há em cada realidade outras potencialidades que podemos explorar além do cárcere do nosso tempo. Como nos diz Claudio Magris, o verdadeiro desencanto é uma forma irónica, melancólica e aguerrida da esperança. O desencanto, que corrige a utopia, reforça esse seu elemento fundamental, que é a crença na possibilidade de, mesmo quando não nos é possível transformar o mundo, existir margem para mudar a vida. Se uma voz nos diz que a vida não tem sentido, é possível encontrar por vezes no seu timbre profundo o próprio eco desse sentido. Essa é a forma de persistência de algumas obras, sendo próprio da poesia essa capacidade de representar as contradições sem resolvê-las conceptualmente, mas compondo-as numa unidade superior, elusiva e musical. Continuamos a dar corda à epopeia que nos resta, sabendo que faz parte dessa busca ir recuperando forças nas poucas livrarias que escapam ao modelo de grande superfície franchisada, aquelas cujas prateleiras não estão ocupadas pelo ranço daquilo a que os vendedores chamam novidades. Depois de uma larga temporada no Largo da Misericórdia, antes de Lisboa se ter transformado em mais outro inferninho turístico, depois de dois anos na Avenida Elias Garcia, aquele que é um dos nossos livreiros mais empenhados nesse tráfico galante aceitou o convite de José Pinho e ocupa, desde há uns anos, o espaço de uma antiga adega, em Óbidos. Um generoso covil na província, onde Luís Gomes deixa que o tempo afine uma ideia de eternidade, que, longe de ser um bairro de deuses, é antes um modo de extravasar todos os vasos, qualquer forma mimando o seu descanso, é uma inquietação essencial, em todos os sentidos, em todas as direcções.

Monday Nov 13, 2023
Monday Nov 13, 2023
Este é o primeiro episódio sem a Joana, que não quis mais andar por este jardim cativo de uma feira bruta com menos diversões que tormentos. Bateu com a porta, por isto e por aquilo. Fica-nos esta necessidade de remorso que não altera nada, e se o mais indicado talvez fosse cumprir um certo luto, para quê vir agora observar protocolos quando até aqui o impudor foi o único heroísmo a que nos entregámos, lavando em público a roupa suja da época. Coube ao Frederico Neves Parreira pegar na outra pá, e é possível que isto agora se pareça um pouco com uma canção entre dois bêbados aos encontrões, tentando lidar com essas ondas de vazio e destroços que se aproximam de nós na saliva e dali saem em pleno mar. O mau hálito da realidade noticiosa hoje passa por nós e deixa-nos completamente desafinados, somos sacudidos e vamos de emoções fulgurantes a uma indiferença absoluta em poucos minutos, e sofremos intimamente esse efeito de desagregação por vermos todos os domínios justapostos sem que os contrastes fiquem claros. Desde as notícias em que o sangue bebe o sangue na Palestina ou nesses quintos de infernos ucranianos, à telenovela politiqueira lusa a querer interpor-se com todo o seu patetismo, as indignações teatrais, cenas de tragicomédia para as carcaças do costume prosseguirem gaguejando o seu latim, indispondo-se, dando-se ares, tornando a língua uma coisa cheia de nós, toda essa cáfila que não desampara a loja, tudo entrecortado por anúncios de perfumes com raparigas a desabotoar os corpetes seguido de reportagens sobre catástrofes ecológicas lado a lado com o último salão do automóvel. E, assim, como nos diz Peter Sloterdjik, os nossos cérebros vão sendo treinados a sobrevoar com o olhar um campo de indiferenças de uma amplidão enciclopédica – em que o assunto tratado não é indiferente em si mesmo mas pela sua integração no fluxo de informações dos media. Neste episódio vamo-nos entregar a essa coluna de pó como se fora levantada por um exército invasor. Depois de termos já escavado algumas trincheiras, distribuído bacamartes pelos tantos reflexos que nos preenchem a solidão, o combate passa antes de tudo por reconhecer como aquilo que está a ceder é a própria realidade. A marcha do progresso transfere-nos para o campo da virtualidade em que tudo se processa a uma velocidade que por si só nos derrota. "E é esse tempo de vida que permite a contínua passagem de uma situação para outra e o esquecimento da situação anterior", como notou Rui Nunes. "A velocidade a que se move o virtual impede a fixação no real, que é dolorosa. Ao passo que a virtualidade é muito menos dolorosa e demora muito menos. Passa-se muito rapidamente de uma para a outra e rapidamente se esquece a anterior. A fixação do real importuna. Um tipo parece que vive num universo em que a dor, a morte, o silêncio, estão a ser rasurados ou afastados da presença, estão a ser despresenciados. O que acontece é que essa ausência da presença leva também à ausência do discurso sobre eles." Neste esforço para relançar o jogo, em vez de nos ficarmos por anjos e demónios, vamos tentar compreender como mesmo as nossas ficções mais baratas remetem para as representações de um bicho papão que, desta vez, vai mesmo levar-nos.

Tuesday Nov 07, 2023
Tuesday Nov 07, 2023
Agora que todos os raciocínios são trincheiras, que um homem que se dê ao trabalho de pensar por si ver-se-á empurrado para as catacumbas de si mesmo, sendo condenado ao isolamento, agora que a quantidade impede qualquer revolta contra ela, quem se esforça por dizer palavras verdadeiras não consegue evitar soar ridículo. Ainda andamos de volta dos jornais, guiados pelos avisos de Karl Kraus contra essa "magia negra", sendo que este se deu conta um dia de que a vida já não passava de uma cópia da imprensa: "A imprensa é um mensageiro? Não, é o acontecimento. É um discurso? Não, é a vida. Ela não só reivindica que os verdadeiros acontecimentos são as suas notícias sobre os acontecimentos como também provoca essa sinistra identidade que gera sempre a ilusão de que as acções são relatadas antes de executadas"... Um século depois de a humanidade ter sido empurrada para uma guerra mundial, hoje a guerra disseminou-se e afecta todos os aspectos das nossas vidas. "O mundo está ensurdecido pela cadência", prosseguia o satirista vienense. "Estou convencido de que as coisas já nem sequer acontecem, antes continuando os clichés a trabalhar sozinhos. (...) A coisa está podre por obra da linguagem. O tempo já cheira mal de tanta frase feita." Mas o pior é que esse regime de substituição da vida pelos lugares comuns e pelas frases feitas não se contém na imprensa, assaltou todos os aspectos da cultura, de tal modo que, como assinalou António Guerreiro, um dos paradoxos do nosso tempo liga-se ao facto de, apesar dos géneros jornalísticos tradicionais atravessarem um momento crítico e de os jornais terem entrado numa fase de estertor, o jornalismo triunfa por todo o lado. Hoje deu-se algo de inesperado. Sem o menor aviso, caiu o governo. Poderia ser um facto capaz de produzir um verdadeiro abalo, se houvesse do outro lado ainda um povo realmente indisposto e não apenas divertido com a situação, ou distraído com outra coisa qualquer. Como em tudo, nos próximos dias, o choque desta inesperada ocorrência será intimidado pelos clichés e a ordem irá restabelecer-se. Talvez com outras moscas, provavelmente aumentando o nível do zumbido. Pela nossa parte, tivemos a oportunidade de falar com um desses raros heróis anónimos do nosso jornalismo. Repórter com um belo cadastro, autor de várias séries documentais, professor universitário, alguém que se bate ainda pela independência do jornalismo e pela sua capacidade de desmanchar os arranjinhos e esquemas do poder. Godinho tem as maiores suspeitas em relação ao mundo virtual, e esclarece que se "a imensa produção de informação digital parece celebrar a narrativização do mundo, no fundo destrói-a pelo excesso, tal como a massa de comentarismo repentista nos jornais, rádios e televisões vai destruindo a real possibilidade de interpretação que exige respeito, distância e reflexão". Este veterano do jornalismo de investigação não duvida de que "continua a haver jornalismo por todo o lado", mas vê-o de tal forma "desfigurado, desnaturalizado, esvaído ou monstrualizado", que se pergunta se, assim sendo, se pode ainda falar de jornalismo. Estamos na era dos que se deixam arrastar, e se o acto ainda é mais forte do que a palavra, Kraus recorda-nos que mais forte que o acto é o eco. "Vivemos do eco e, neste mundo às avessas, é o eco que desperta o grito." Hoje caiu um governo péssimo. Mas, se há uma coisa de que podemos estar certos, é que nos próximos meses as moscas do costume irão anestesiar-nos de tal modo que acabaremos por engolir algo ainda pior. Isto porque, "na organização do eco, a fraqueza é capaz de uma metamorfose extraordinária".

Tuesday Oct 31, 2023
Tuesday Oct 31, 2023
Entre os de papo cheio e os manga-de-alpaca que tornam os corredores ainda mais longos e bafientos neste regime miserando, vamos buscando quartos com os estores em baixo, onde "conferenciamos em surdina com as nossas almas, isto é, as peças dos equipamentos espatifados que os nossos inimigos nos deixaram" (Sean Bonney). Quando se vai em campanha, o jornalismo é a actividade dos batedores, dos que desenham mapas à vista, e é certo que nos aprazaria partirmos daqui, mas só nos restam uns barcos desconjuntados, de proa levantada, enterrados na areia. Continuamos a escutar os que compuseram as suas ideias numa ordem tal que não deu para se ficarem pelas meias-tintas. Listamos cidades como eles faziam, as arruinadas ou as que ficam debaixo do véu da imaginação. Se não fomos a lado nenhum, chegámos à meia-idade com a sensação de que não podíamos estar mais longe de casa. Ainda falamos do sol e daqueles a quem hoje este faz mais falta, falamos dos amigos perdidos, de monotonia e de medo. "De colonialismo de ocupação, de capital e escravatura, dos setenta e nove bastardos reais que tapam a luz do Céu. Ora, o Céu que se lixe. (...) Nada nos resta a fazer senão acordar dos sonhos que temos de nós próprios e calcorrear a terra como reflexos dos fogos de artifício do Inferno." Só nos revemos no discurso daqueles que foram devastados intimamente ao ponto de se matarem, como Bonney, aqui na tradução de Miguel Cardoso do livro "A Nossa Morte", publicada pela Douda Correria. Quanto ao jornalismo, se não servisse apenas para nos afugentar daqui, deveria funcionar como o sistema imunitário democrático. Hoje é o contrário. Em vez de um quarto poder, é um elemento acessório através do qual se disseminam todo o tipo de vícios que atacam e corroem a inteligência, de tal modo que ao ler os títulos ao nosso alcance ficamos com a "suspeita de que foi para a encenação de um sacrifício já consumado que nos convidaram (…) e é como se ruísse um cenário com o estrondo de um mundo a sério, os escombros da imaginação tão perigosos como os da realidade" (Fátima Maldonado). Hoje o jornalismo mal consegue respirar debaixo da "obesidade da opinião". A sua função crítica entrou em falência quando escolheu adaptar-se à lógica do entretenimento, promovendo "a encenação de polémicas e debates que funcionam em circuito fechado, segundo uma tendência endogâmica, tautológica e mimética que atinge os cumes da exasperação quando há um acontecimento ou um assunto actual que polariza as atenções, e logo desaparece. O espaço jornalístico fica então dominado por um coro homogéneo e parece uma engrenagem autotélica que funciona para se alimentar a si própria", diz-nos António Guerreiro… "Cria-se assim a ilusão – uma das maiores ilusões do nosso tempo – de que este jornalismo cria um espaço público alargado, próprio de uma sociedade transparente, quando na verdade a reduz na sua amplitude e alcance." Enquanto isso, numa altura em que muitos se satisfazem com a indústria dos conteúdos oferecidos gratuitamente na internet, o ensaísta espanhol José Luis Pardo vinca como esta não tem feito outra coisa senão produzir "uma inflação da privacidade sem precedentes, uma exaltação do ego até limites inimagináveis. Por isso, é equívoco confundir essa hiperesfera egolátrica com uma ‘esfera pública ampliada’". Para reflectir sobre isto, reunimo-nos com Nuno Ramos de Almeida, veterano já todo cicatrizado desta guerra, e alguém que vai sendo promovido e despromovido consoante as ondas que chegam à praia, e que parece desses tipos amarrados ao mastro da própria profissão, caindo em todas as armadilhas, engolindo as tempestades, sentindo na pele os efeitos da perda de poder e autonomia desta classe que, antes dos médicos e enfermeiros ou dos professores, foi proletarizada e sucessivamente humilhada.

Thursday Oct 19, 2023
Thursday Oct 19, 2023
Nove séculos depois, com tanto desaire, tantos tombos e ilusões a naufragar neste sangue, está difícil vir tirar do prego as três sílabas que em tempos cunhámos em cobre e nos foram devolvidas em plástico, esta vaga pertença sobre a qual vemos acumularem-se juros impossíveis de saldar na loja de penhores inglesa onde a deixámos, temporariamente apenas, só enquanto nos curávamos de outra carraspana. De lá para cá, ficou tudo a preto-e-branco, só do estrangeiro é que ainda apanhamos uma emissão a cores. Este país que é uma imensa culpa, mais que só um remorso, esta dívida transmitida entre as gerações, e com tanta dificuldade em explicar porquê. A viagem medonha terminou, mas o enjoo persiste, o desequilíbrio nos sentidos, a sensação de que o mar não são lágrimas, mas um vómito de séculos. E então voltamos ao tombadilho, procuramos um capitão desde o último episódio em que houve um sinal de coragem, de força, e de súbito vem-nos a sensação de que se Portugal alguma vez teve algum fulgor, isso deu-se nos momentos em que se viu lançado numa visão recém-descoberta de si mesmo, uma espécie de heresia contra o repertório de atitudes cínicas, a tacanhez auto-indulgente, a cobardia oficial, os protocolos achincalhantes e essa desgraçada reputação que sempre nos precede. Um forte murro nas trombas pode ser o gesto mais fraterno quando vivemos apoiados num sonho a cair de podre. “Porque chega o momento/ em que até o sonho é uma ironia/ e o despertar um simulacro”, como notou Juarroz. De Abril foi resistindo um género de bazófia popular, como se aquele povo miúdo tivesse despertado certa manhã todo audacioso, com vontade de pedir contas por décadas de tirania e aviltamento. Para não nos perdermos nesse nevoeiro por onde se vai retomando os mesmos passos desolados, quisemos ouvir por uma vez um dos nossos capitães, Carlos Matos Gomes, um homem que persiste à margem dessas bêbadas fantasmagorias, lúcido e desafiador, sem receio de confrontar o passado nem de descompor as tretas que alinham para o nosso consumo diário, para não deixar que no futuro ninguém coza de vez esta tremenda bebedeira. Fomos ouvir este coronel reformado, escritor (assinando com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz) e um dos autores mais empenhados em garantir que algum dia despertamos deste estado de estupor para sabermos o que fomos, que coisas fizemos, antes de nos rendermos a esta condição de menoridade, de apatia, de servidão alegre e voluntária.

Thursday Oct 12, 2023
Thursday Oct 12, 2023
Mesmo entre os que ainda pegam num jornal para o ler, em vez de logo o enrolarem para enxotar alguma mosca, há gente que só lê as páginas de desporto, outros só lêem as páginas de sucessos, outros dedicam-se aos horóscopos, alguns preferem as palavras cruzadas, e há também aqueles que vão direitinhos aos necrológios. Apesar de tudo, há ainda muita gente que não sabe ler, e, entre os que dizem que sabem, tantos passam ao lado de tudo o que importa, mas vão interiorizando a ideia de que é inútil resistir, travar alguma luta, preferindo entreter alguma esperança absurda. Quem sabe serão resgatados às suas vidas por um prémio do euromilhões, ou talvez os alienígenas venham pôr ordem nesta porra triste. Seja como for, proliferam a superstição, o mindfulness e outras terapias new age, todo esse catálogo de soluções às quais os impotentes recorrem. Mas a grande desilusão do nosso tempo é, sobretudo, política, e este é o cenário de uma distopia em que as próprias gerações mais novas e mesmo as classes mais desfavorecidas parecem incapazes de produzir surpresas. Numa altura em que é mais fácil supor que uma greve anímica, uma espécie de inércia bartlebyana ou um virar de costas e abandono depressivo possa ser ainda o único pacto que venha a apontar um caminho, estávamos a precisar de uma outra perspectiva sobre as alternativas, e virámo-nos para Diogo Duarte, um tipo que não se limita a rezar por um milagre negativo, nem espera grande coisa do jornalismo, mas que assume que quando destapou o horizonte o fez através do punk-hardcore, antes de se meter pela antropologia, tendo publicado há semanas o livro “O Anarquismo e a Arte de Governar”, a partir da sua tese de doutoramento sobre aquele movimento operário que não precisa de ir mais longe, e que conta com três décadas fulgurantes entre nós, um período que tem sido útil esquecer até para lhe fixar essas caricaturas toscas, mas tão persistentes. Se, hoje, a primeira coisa que se nos impõe é conseguir, de algum modo, tirar as forças reaccionárias das nossas cabeças, ele vem falar-nos da dimensão prefigurativa do anarquismo, a noção de que a prática revolucionária colectiva tanto como a nível individual passa por sabermos viver já de acordo com essa nova sociedade pela qual ansiamos.

Monday Oct 02, 2023
Monday Oct 02, 2023
Em breve a dor será tida como uma substância ilícita, devendo ser erradicada em regime preventivo com recurso a uma panóplia de fármacos, desde logo estabilizadores de humor. E quem a ela responder em público será alvo de punição. Não há direito a incomodar os que estão a gozar os benefícios de uma existência radiante, e não merecem ser confrontados com o desmazelo dos que se recusam a cumprir com o programa. Está em fase de teste a vacina contra todo o tipo de sofrimentos, os físicos e sobretudo os de ordem da consciência. Como se sabe, "quando dói demais endoidece-se". Por essa razão, o programa de saúde mental forçada manda extirpar essas formas de apreensão degenerada da realidade. Era evidente onde tudo isso nos levaria. Dos relatos de alguns que se recusaram a fazer os tratamentos, têm sido colhidas amostras desse género de desespero que vinha envenenando as nossas produções líricas. De um dos sujeitos que escondia os comprimidos debaixo do colchão, recolhemos o seguinte testemunho: "Músculos tensos, grito parado, a inquirição prossegue por entre camadas de angústia cerrada. Fura, brita, escava, alonga túneis por onde avança o corpo cercado. Por vezes tem a espessura de montanhas, muros sobre muros que não acabam." O livre arbítrio provou ser uma empreendimento ruinoso, e os accionistas exigiram medidas de contenção. Como registo o nosso paciente, "o maior problema das crises económicas é serem sempre o princípio de uma crise moral. A razão é muito simples: a moral é cara e sustentá-la tende a ser considerado desperdício". Assim se provou que era preciso revirar, desfigurar e, por fim, dar cabo da moral. Aos que continuarem a resistir aos nossos paraísos distractivos, poderá ser instrutivo irem passar uns dias em observação daqueles que temos na condição química natural, e sujeitos a cativeiro. Não lhes é dado mergulhar no êxtase químico. Temos poetas para redigirem as bulas. Depois há esses que precisam ser esmagados, com as suas convicções grotescas, os seus escritos odiosos, as suas formas de organização terrorista. Considere-se o conteúdo de uma nota retirada do diário de um deles: "Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar."[Os excertos citados são da autoria do nosso convidado.]

Wednesday Sep 27, 2023
Wednesday Sep 27, 2023
Eça de Queiroz dizia que na sonolência enfastiada em que vivemos, num país onde a vitalidade humana apenas se conserva num egoísmo feroz e numa devoção automática, não nos é dado aspirar a uma existência propriamente, mas tão-só a alguma forma de expiação. Agora os abutres de serviço dizem-se muito empenhados em honrá-lo, mas vão-se esquecendo como, no ambiente de decadência endurecida que é o nosso, ele fez de tudo para abrir um caminho à bordoada, empenhado em ver se haveria um modo de pôr a galhofa ao serviço da justiça. Seria assim de elementar justiça vir lembrar as nossas aves necrófilas que, neste regime em que as mesmas consciências que certificam a podridão depois também revelam um temperamento que se dá maravilhosamente nessa mesma podridão, as honras na verdade só desonram. Mais valia que lhe desenterrassem os restos e o apedrejassem numa sessão com real poder evocativo. Se há uma linha de demarcação de que nos podemos servir para distinguir os poucos que não vêem a vida cultural como uma carreira diplomática debaixo da bandeira do seu próprio ego, essa linha será o conhecimento do inferno, ou pelo menos a forte suspeita de que estamos mergulhados nalguma confluência dos seus círculos. Agamben regista um curioso rumor que ouviu numa das suas passagens por Roma, com alguém a defender que a terra seria o inferno de um outro planeta desconhecido e que a nossa vida não é mais que o castigo que os condenados de lá padecem pelos seus pecados. E se a hipótese não pareceu inteiramente descabida ao filósofo italiano, o seu único motivo de perplexidade era tentar enquadrar nesse cenário alguns aspectos consoladores a que ainda vamos tendo direito, como o céu e as estrelas e o canto dos grilos… Seria uma harmonia desnecessária, a não ser, aventava ele, que se acredite que, para a pena ser ainda mais atroz e subtil, o inferno tenha sido colocado a uma distância enganadora do paraíso. Esta vizinhança renovaria um certo ímpeto sonhador, estendendo uma esperança apenas para que cada um fosse lançado uma e outra vez nesse abismo que se abre dentro de nós. Mas esta noção parece distante da maioria das pessoas que se servem da cultura como distracção, desses números que crescem e se rendem a tudo numa adulação nervosa e imbecil. Numa das suas crónicas, Eugénio Lisboa faz-nos ver a audácia que seria necessária hoje para interromper este ambiente de tepidez mole, e justamente aponta o exemplo de um crítico, o dadaísta Jacques Vaché, que, certa noite, subiu ao palco de um teatro parisiense, puxou de um revólver e ameaçou disparar contra quem quer que se atrevesse a aplaudir a peça. O aplauso tornou-se, entre nós, a reacção imediata de um público que se habituou a essa diluição no que quer que lhe metam à frente. Pelo contrário, este nosso convidado é hoje dos poucos autores entre nós que, sem qualquer traço de bazófia, poderia apropriar-se daqueles dois versos estupendos de Nemésio: "A minha vida está velha/ Mas eu sou novo até aos dentes." Mantém-se por aí, honrando a sublime brutalidade da vida, com a sua prosa desprendida, do lado de uma cultura exaltante, redigindo crónicas que não atraiçoam o encanto com que se foi fazendo um leitor inveterado desde cedo, e, por isso, também sem muita paciência para os enredos da banha da cobra, capaz de gritar ainda que o rei vai nu, com a insolência e o gozo imprecativo que é próprio dos miúdos. Foi a melhor forma de arrancarmos com a segunda temporada deste podcast, depois de alguns desaires, férias desgraçadas, filmes de terror em hospitais, o real quotidiano à portuguesa, no século XXI.