Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

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Episodes

Thursday Jan 04, 2024

Se o nosso tempo não nos diz puto, todos os dias parecem ser domingo neste povoado à beira-mar e que eles se esqueceram de bombardear. Era mais ou menos isto que ouvíamos de uma dessas canções da nossa adolescência, e de algum modo batia certo, pois a sensação de desenraizamento deixa margem a uma estranha ânsia de aniquilação. É isso o que secretamente desejávamos quando se falava num ano novo: que se pudesse limpar com um pano molhado aquilo que ficou escrito no quadro, essas noções limitadas e desidratadas que nos obrigavam a decorar. Hoje faz-nos rir todo o tipo de imbecilidades com que eles nos martirizavam, e parece que até esse passado, com as suas estruturas inquestionáveis e misteriosamente harmónicas, se encontra destroçado e a ruir diante dos nossos olhos. E, no entanto, nem isso nos alivia da ansiedade histórica com que vivemos. É ridícula a ideia de se acolher numa data específica uma ideia de renovação, um futuro refeito de todas as decepções que carregamos, e sobretudo fazê-lo segundo um sistema de registro completamente arbitrário. Mesmo depois de ultrapassarmos a esperança, que foi durante muito tempo a nossa principal fraqueza, o problema com as datas em geral, as epoquizações e balanços que fazemos, é que não podemos programar os nossos apocalipses. A 1 de janeiro de 1916, Gramsci publicou uma coluna intitulada "Odeio o dia de Ano Novo" no jornal oficial do Partido Socialista Italiano, "Avanti!" Começava assim: "Todas as manhãs, quando desperto de novo  sob o céu nublado, sinto que para mim é dia de Ano Novo. É por isso que detesto estes anos novos que caem como prazos vencidos, que transformam a vida e o espírito humano numa empresa comercial, com o seu saldo final bem arrumado, os seus montantes pendentes, o seu orçamento para a nova gestão. Fazem-nos perder a continuidade da vida e do espírito. Acabamos por pensar seriamente que entre um ano e o outro há uma pausa, que começa uma nova história; tomamos resoluções e arrependemo-nos da nossa irresolução, etc., etc." As datas que assinalamos, no entender de Gramsci, não passam de "penas de prisão espiritual" que nos foram impostas pelos "nossos tolos antepassados". Tornaram-se "invasivas e fossilizantes", forçando a vida a repetir séries de "ritmos colectivos obrigatórios". Era bom que a desculpa de um ano novo pudesse servir para fechar esse parêntesis da imbecilidade mascarada de civilização, da anemia mascarada de fulgor, e servisse para forçar um intervalo, um período de suspensão e exame crítico, ou até um exorcismo. Dos milhares de acontecimentos que sobrevêm todos os anos nunca poderia resultar uma harmonia perfeita, empurrando no mesmo sentido. Mas cada vez são mais as coisas que não foram digeridas, e que se guardam em nós de forma atropelada, gerando uma sensação de impotência ou indisponibilidade. Prisioneiros de um regime de aceleração maníaca, só o exorcismo revelaria uma reacção em força perante esta forma de possessão. Mas se esperamos dos intelectuais com banca e atestado, dos críticos e demais panegiristas profissionais que se ocupem destas tarefas, estamos bem lixados. Contudo, há uma indisposição geral que parece abrir margem para a organização do nosso pessimismo. Na Cidade cosmopolita, há focos de desordem, a inquietação respira-se no ar, como no poema de Cavafy: "E porque não vieram hoje, aqui, como é costume, os oradores/ para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?/ Porque os bárbaros é hoje que aparecem,/ e aborrecem-se com eloquências e retóricas." Ainda não chegámos aí, é claro. Mas já alguns viram costas à família, e se mostram dispostos a assumir a felicidade da derrota, a felicidade de ter de recomeçar tudo de novo. Neste episódio recebemos João Oliveira Duarte para nos ajudar na busca desse efeito libertador, a concatenar juízos severos para nos furtarmos à desgraçada benevolência de um tempo que se agarra a esses rituais e ritmos colectivos na tentativa de adiar a promessa aniquiladora deste tempo.

Thursday Dec 28, 2023

Dantes os pássaros alimentavam-se da carne dos capitães que morriam do outro lado do mundo. Dados como perdidos, a sua lenda desfazia-se em migalhas sustendo esses seres que não têm começo nem fim. A vida aproveita-se deles como de mais nenhuma outra imagem. Esses bandos, tomando o ar do seu canto, deixando ao vento um ar de espanto. E ensinam-nos tanto que, vislumbrando o seu Cabo Finisterra, Manuel de Castro anotou isto: “Tudo tomou rumo diferente do previsto/ – pouso as mãos nas asas quebradas dos pássaros/ de quem o sentido inútil se fez vida.” Nalgum momento, um homem há-de olhar siderado, pela última vez, um pássaro cruzar os céus. Não há outro resumo tão intenso, sendo que foi nos pássaros que tanto buscámos compêndios da vida. Nascidos sem lei nem forma, como aparas, sobras que ficaram espalhadas pela mesa de trabalho, e que aos poucos desataram a tremer de uma agitação inexplicável, lançando-se no assalto das distâncias. Fala-se da descuidada juventude deles, por facilidade sugere-se o seu exemplo para falar da inocência. Mas é mais atento compreender como legislam em segredo essas assembleias, decretos regulando em detalhe o que se liga às proporções inestimáveis. Contabilistas dos deuses, os pássaros são antes de mais uma ordem de medida, e também uma linguagem cujos signos e o próprio sentido se extraem a partir de um movimento incessante. A propósito de outra coisa, alguém notava que o mundo é um texto em movimento que deve ser decifrado através de textos em movimento. É isto o que são os movimentos dos pássaros, em bandos ou isoladamente. Uma escala para se reconhecer os elementos de harmonia e essas formas de ruptura que sinalizam as sórdidas fantasias e os degenerados cálculos daqueles que se acham em posições de poder. Andreia Farinha, no seu trabalho enquanto encenadora e dramaturga, há muito que mergulhou nesses elementos que permitem interpretar os pássaros como caracteres de uma outra relação com a História. Uma abordagem que passa desde logo por desmistificar o carácter épico desta. Também lhe interessa cortar com a visão sentimentalista da natureza, esta que elege os pássaros como emissários de uma “primavera sem fim”. Ao propor uma história política das aves, lembra que quando Hitchcock encena em Birds (1963) um motim dos pássaros, resgata o tema da sua aura suprapolítica e bucólica para nos assombrar com a complexidade insólita da nossa história, uma história que também é, e muito, interespecífica. À frente de uma estrutura teatral como a Truta no Buraco, num desacordo formidável com o que nos é servido nas casas reais da cultura lusa, abre caminho a pesquisas a partir de “histórias completamente absurdas”. 

Friday Dec 22, 2023

Nas vésperas deste episódio, o Frederico tomou-se de um febrão daqueles que até os ossos amolecem, e que excitam o tipo de delírios que depois não se podem reproduzir, assim, amarrado à cama como um possuído, desta vez deixou o lugar ao Fernando Ramalho, espécie de Robinson destas saídas à cata do inesperado. Numa altura em que só precisamos de uma rajada mais forte para cair da muralha, abandonar a meio o turno, aí onde cumprimos funções face a um regime cada vez mais precário, cada vez mais sórdido, e que ainda assim nos vai extorquindo o dia seguinte, onde vamos buscar a música suficiente para dançar a vida é a estes encontros em que a angústia comum encontra ânimo de modo a superar esse vazio a que nos dizem destinados. Aporrinhados pelas obrigações destes dias, acabámos por falar em Cristo, mas sem nos juntarmos a algum coro de Natal, e em vez de uma missa do galo, esta missa deu numa cabidela dos diabos. É o 33.º episódio, são já tantos quantos os anos daquele que foi daqui, meio esburacado, e que hoje vai sendo usado pelos da "família" mais para dissuadir outros da via da paixão, que é sempre radical. E desta vida que anda tão difícil mesmo só de levar com ela, alguns perguntam-se: Para onde havemos de sair se em nós já não há uma suficiente soma de delírio? Talvez o sacrifício e a morte sejam hoje tudo aquilo que de uma verdadeira religião ainda nos resta. Mas isto não tem necessariamente de nos levar ao desespero. Como disse um sábio desses sem grande saída nos nossos dias: "Um homem (que vive com a ideia da sua morte) não deseja absolutamente nada porque adquiriu um apetite silencioso pela vida e por todas as coisas da vida. Sabe que a morte não lhe dará tempo para se agarrar ao que quer que seja, e isso faz com que, sem sentir um desejo obsessivo por nada, tente a totalidade de todas as coisas." Em busca de um alento e de uma experiência de recusa, virámo-nos desta vez para Maria Lis, poeta e educadora no sentido mais lato e inquietante do termo, alguém que acaba de ter a sua estreia com o livro "Turbulenta Forma", que traz uma frescura regeneradora a este género já tão cansado, alguém que se habituou a desdobrar o espaço, e que anda muito, muito mesmo, enquanto nos canta coisas que vão do embale ao desarme em menos de nada.

Wednesday Dec 13, 2023

A promessa de um mundo que começa com uma catástrofe não é necessariamente contraditória, e, no entanto, o futuro ainda só parece fazer-se sentir à distância, e alcança-nos por meio de vislumbres, como um pressentimento. Entretanto, enquanto tudo ao nosso redor lhe resiste, é possível folhear um caderno e ler sobre as variações possíveis do que nos espera. Muito do que está em causa exige de todos um pesado sacrifício e, por isso, uma coragem que terá de ser inventada de novo. Pasolini dizia isto a esse respeito: "Penso que é necessário educar as novas gerações para o valor da derrota. A lidar com ela. Na humanidade que dela emerge. Na construção de uma identidade capaz de perceber uma comunidade de destino, na qual é possível falhar e recomeçar sem afectar a coragem e a dignidade. Em não ser um alpinista social, em não pisar o corpo dos outros para chegar primeiro. Neste mundo de vencedores vulgares e desonestos, de fazedores falsos e oportunistas, de eminências que ocupam o poder, que escamoteiam o presente e nem se fala do futuro, de todos aqueles que têm a neurose do sucesso, da fama, de se alcançar uma posição. Perante esta antropologia do vencedor, prefiro de longe o perdedor". Sobre estes dias que correm dominados pelo absurdo pouco resta a dizer, e talvez não tenhamos para eles outra coisa senão "últimas palavras", como nos diz o poema de Ivan Junqueira: "Eis enfim o que expressa/ a boca que se fecha:/ uma praga, uma prece,/ algo de ermo e secreto,/ o asco aos vermes do verbo." Não há como seguir outro caminho que não passe por virar costas ao vivido, buscar por todos os meios uma ruptura, alimentar-se do próprio desespero. A grande questão é saber que luzes ainda nos servem de orientação. E mesmo em relação ao que está por vir, temos de nos questionar se o mundo será capaz de ouvir o que nunca lhe foi dado ouvir, se admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado perante o que nunca imaginou. Por agora, como nos diz Álvaro Domingues, "faltam as palavras para ficcionar os acontecimentos que se sucedem em séries truncadas que não deixam ver para a frente. E sem ficções, a realidade é como um labirinto de acontecimentos a que falta um modo de apresentação, um encadeamento. Repetem-se as mesmas histórias, somam-se quantidades, procuram-se outras geografias para repisar os mesmos casos, as mesmas imagens, os mortos, os aflitos..." Neste episódio, foi para este geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto que nos virámos. Este explorador do que já se julga conhecido, e que se tem especializado em desarrumar conceitos, desmanchar termos e noções demasiado vagas, abstractas. Um pensador para quem o desafio passa por não abrir mão das nossas dúvidas e suspeitas, não embarcar, não aderir às comunidades de pregar com pregos as partes mais vulneráveis da matéria. 

Wednesday Dec 06, 2023

No Telhal ninguém lê Camões, e é pena. Talvez fizessem mais sentido dele. Cá fora os usos que se lhe dão, diga-se de passagem, também não são melhores. Até nos vícios já fomos mais sinceros. Já bebemos com outra honestidade, exactamente por nos sabermos sem escapatória, desertávamos intimamente pondo-nos a inventar com uma ferocidade que por estes dias tem andado desaparecida. Por indisposição do olhar e consequente nervura no pensamento, o nosso sentido de aproveitamento da realidade parece ter metido baixa, sofre de ansiedade, vertigens do camandro. As propostas que chegam entre as persianas não são demasiado tentadoras, por isso desta vez nos recolhemos a atirar conversa fora, com Nunes da Rocha, poeta de asa sofrida, que nos “diz uma pilhéria/ dá um peido em décimas/ e depois/ arremete caga-lume/ da noite ao Sol”. É dos últimos que foram revelando esse talento de andar a monte, e vai por aí fora, pelas províncias do pânico face ao mundo, com o Lima o Ângelo mailo Gancho António. Corre os balcões dando corda a uma fantasia turva, sem inchaço moral ou calo histórico, com palito nos dentes e asco a olear mecanismo no tasco. Há por aí demasiada conversa dominical, e o que procurámos foi fugir-lhe seguindo o poeta aos trambolhões por um lugar onde acabam comboios com ferrugem e destreza. O próprio Nunes da Rocha é uma espécie de longa composição, de gente que se esqueceu do destino que levava, uma comunidade que desandou a dar ao pedal. Entre as suas penas, se nos pusermos à espreita, dá para catar muita dessa gente, e apetece citar Albert Cossery nas suas Cores da Infâmia: "Impermeável ao drama e à desolação, esta chusma de gente carreava uma espantosa variedade de personagens pacificadas pela sua ociosidade; operários sem trabalho, artesões sem clientela, intelectuais desinteressados da glória, funcionários administrativos expulsos das repartições por falta de cadeiras, diplomados das universidades vergados ao peso da sua ciência estéril, enfim, os eternos trocistas, filósofos amorosos da sombra e da quietude que dela emana, para quem a deterioração espectacular da sua cidade tinha sido especialmente concebida para lhes aguçar o sentido crítico."

Thursday Nov 30, 2023

O mundo (este ou outro qualquer) é o conjunto de imagens-tendências projectadas a uma mesma velocidade, essa a que o olho humano se pode adaptar, captando-a, do mesmo modo que um receptor de rádio conectado a uma determinada frequência capta modulações que constroem sentido nessa banda sonora. Mas se hoje tudo começa a parecer-nos excessivo, se há ruído demais na frequência, se as imagens se atropelam e nos dão uma perspectiva grande demais para ser abordada, acabamos por nos sentir humilhados. É tão difícil provocar mossa. Em qualquer direcção que se olhe, perde-se a vista. E, à medida que a História se abre com a paisagem, também o tempo se torna uma dificuldade. Só pela contenção se consegue recuperar o ritmo, e pelo verbo já se vai à algum lado. Como o Nemésio dizia: "Nomeei as coisas e fiquei contente:/ Prendi a frase ao texto do universo." Se há tantos modos de ganhar balanço, não se pode esquecer como só fazemos sentido do mundo por meio de cortes. O próprio mundo fazemo-lo cortando, aplicando inumeráveis cortes no infinito. Colhemos um pedaço, abrimo-lo em gomos e, com a paciência de o mastigar e digeri-lo damo-nos conta do que temos ao nosso redor, esse cerco que só parece arbitrário. É preciso tomar o impulso como direcção, como sentido, ir atrás, fazer-se cúmplice. Emprestar-se ao que nos surge, sentir o puxão disto ou daquilo, rastreá-lo, refazer o contexto. Ir ao Padre António Vieira espantar-se, quando essa era a função dos que falavam em nome de outros mistérios: "que admiráveis transformações de formosura faz invisivelmente a morte debaixo da terra! Os químicos não acharam até agora a pedra filosofal, porque não fizeram ensaio nas pedras de uma sepultura. Falando Deus a Abrão na gloriosa descendência de seus filhos, umas vezes comparou-os a pó, e outras a estrelas, para ensinar — diz Filo — que o caminho de se fazerem estrelas era desfazerem-se em pó. Que cuidais que é uma sepultura, senão uma oficina de estrelas? Ainda a mesma natureza produz maiores quilates de formosura em baixo que em cima da terra." Numa época que tudo faz para nos siderar ao mesmo tempo que nos torna míopes, projectando sobre nós essa "luz inextinguível que tudo aclara, mas nada revela", uma "luz mais escura que a treva", ainda nos serve de alguma coisa lançar o olhar para o firmamento, encantar-se pelo que nos é longínquo, seguir hipóteses mirabolantes e penetrar a névoa do futuro. Desta vez, contámos com a serena intrepidez de Rui Lage, poeta e ensaísta, deputado socialista, um tipo que tem sabido esquivar-se ao cinismo e manter uma postura tão discreta  quanto empenhada, segurando a frequência, construindo um sentido claro, sem deixar de ser abalado por este tempo, pelos desafios que impõe.

Thursday Nov 23, 2023

Traficantes de sinais que persistem entre a escória de cada época, cabe aos livreiros um papel fundamental nas operações de resgate e nesse cultivo de uma esperança que, ao contrário do que se pensa, não nasce de uma visão tranquilizadora e optimista, mas de uma laceração da existência vivida e confrontada depois de se lhe arrancar todos os véus. É precisamente isto o que gera uma irreprimível necessidade de resgate. A esperança é, afinal, um conhecimento completo das coisas, e não apenas de como surgem e são, mas também daquilo em que têm de se converter para se conformarem com a sua realidade mais plena. Aprendemos com os livreiros a respeitar um convívio num tempo mais largo, a reconhecer como há em cada realidade outras potencialidades que podemos explorar além do cárcere do nosso tempo. Como nos diz Claudio Magris, o verdadeiro desencanto é uma forma irónica, melancólica e aguerrida da esperança. O desencanto, que corrige a utopia, reforça esse seu elemento fundamental, que é a crença na possibilidade de, mesmo quando não nos é possível transformar o mundo, existir margem para mudar a vida. Se uma voz nos diz que a vida não tem sentido, é possível encontrar por vezes no seu timbre profundo o próprio eco desse sentido. Essa é a forma de persistência de algumas obras, sendo próprio da poesia essa capacidade de representar as contradições sem resolvê-las conceptualmente, mas compondo-as numa unidade superior, elusiva e musical. Continuamos a dar corda à epopeia que nos resta, sabendo que faz parte dessa busca ir recuperando forças nas poucas livrarias que escapam ao modelo de grande superfície franchisada, aquelas cujas prateleiras não estão ocupadas pelo ranço daquilo a que os vendedores chamam novidades. Depois de uma larga temporada no Largo da Misericórdia, antes de Lisboa se ter transformado em mais outro inferninho turístico, depois de dois anos na Avenida Elias Garcia, aquele que é um dos nossos livreiros mais empenhados nesse tráfico galante aceitou o convite de José Pinho e ocupa, desde há uns anos, o espaço de uma antiga adega, em Óbidos. Um generoso covil na província, onde Luís Gomes deixa que o tempo afine uma ideia de eternidade, que, longe de ser um bairro de deuses, é antes um modo de extravasar todos os vasos, qualquer forma mimando o seu descanso, é uma inquietação essencial, em todos os sentidos, em todas as direcções.

Monday Nov 13, 2023

Este é o primeiro episódio sem a Joana, que não quis mais andar por este jardim cativo de uma feira bruta com menos diversões que tormentos. Bateu com a porta, por isto e por aquilo. Fica-nos esta necessidade de remorso que não altera nada, e se o mais indicado talvez fosse cumprir um certo luto, para quê vir agora observar protocolos quando até aqui o impudor foi o único heroísmo a que nos entregámos, lavando em público a roupa suja da época. Coube ao Frederico Neves Parreira pegar na outra pá, e é possível que isto agora se pareça um pouco com uma canção entre dois bêbados aos encontrões, tentando lidar com essas ondas de vazio e destroços que se aproximam de nós na saliva e dali saem em pleno mar. O mau hálito da realidade noticiosa hoje passa por nós e deixa-nos completamente desafinados, somos sacudidos e vamos de emoções fulgurantes a uma indiferença absoluta em poucos minutos, e sofremos intimamente esse efeito de desagregação por vermos todos os domínios justapostos sem que os contrastes fiquem claros. Desde as notícias em que o sangue bebe o sangue na Palestina ou nesses quintos de infernos ucranianos, à telenovela politiqueira lusa a querer interpor-se com todo o seu patetismo, as indignações teatrais, cenas de tragicomédia para as carcaças do costume prosseguirem gaguejando o seu latim, indispondo-se, dando-se ares, tornando a língua uma coisa cheia de nós, toda essa cáfila que não desampara a loja, tudo entrecortado por anúncios de perfumes com raparigas a desabotoar os corpetes seguido de reportagens sobre catástrofes ecológicas lado a lado com o último salão do automóvel. E, assim, como nos diz Peter Sloterdjik, os nossos cérebros vão sendo treinados a sobrevoar com o olhar um campo de indiferenças de uma amplidão enciclopédica – em que o assunto tratado não é indiferente em si mesmo mas pela sua integração no fluxo de informações dos media. Neste episódio vamo-nos entregar a essa coluna de pó como se fora levantada por um exército invasor. Depois de termos já escavado algumas trincheiras, distribuído bacamartes pelos tantos reflexos que nos preenchem a solidão, o combate passa antes de tudo por reconhecer como aquilo que está a ceder é a própria realidade. A marcha do progresso transfere-nos para o campo da virtualidade em que tudo se processa a uma velocidade que por si só nos derrota. "E é esse tempo de vida que permite a contínua passagem de uma situação para outra e o esquecimento da situação anterior", como notou Rui Nunes. "A velocidade a que se move o virtual impede a fixação no real, que é dolorosa. Ao passo que a virtualidade é muito menos dolorosa e demora muito menos. Passa-se muito rapidamente de uma para a outra e rapidamente se esquece a anterior. A fixação do real importuna. Um tipo parece que vive num universo em que a dor, a morte, o silêncio, estão a ser rasurados ou afastados da presença, estão a ser despresenciados. O que acontece é que essa ausência da presença leva também à ausência do discurso sobre eles." Neste esforço para relançar o jogo, em vez de nos ficarmos por anjos e demónios, vamos tentar compreender como mesmo as nossas ficções mais baratas remetem para as representações de um bicho papão que, desta vez, vai mesmo levar-nos.

Tuesday Nov 07, 2023

Agora que todos os raciocínios são trincheiras, que um homem que se dê ao trabalho de pensar por si ver-se-á empurrado para as catacumbas de si mesmo, sendo condenado ao isolamento, agora que a quantidade impede qualquer revolta contra ela, quem se esforça por dizer palavras verdadeiras não consegue evitar soar ridículo. Ainda andamos de volta dos jornais, guiados pelos avisos de Karl Kraus contra essa "magia negra", sendo que este se deu conta um dia de que a vida já não passava de uma cópia da imprensa: "A imprensa é um mensageiro? Não, é o acontecimento. É um discurso? Não, é a vida. Ela não só reivindica que os verdadeiros acontecimentos são as suas notícias sobre os acontecimentos como também provoca essa sinistra identidade que gera sempre a ilusão de que as acções são relatadas antes de executadas"... Um século depois de a humanidade ter sido empurrada para uma guerra mundial, hoje a guerra disseminou-se e afecta todos os aspectos das nossas vidas. "O mundo está ensurdecido pela cadência", prosseguia o satirista vienense. "Estou convencido de que as coisas já nem sequer acontecem, antes continuando os clichés a trabalhar sozinhos. (...) A coisa está podre por obra da linguagem. O tempo já cheira mal de tanta frase feita." Mas o pior é que esse regime de substituição da vida pelos lugares comuns e pelas frases feitas não se contém na imprensa, assaltou todos os aspectos da cultura, de tal modo que, como assinalou António Guerreiro, um dos paradoxos do nosso tempo liga-se ao facto de, apesar dos géneros jornalísticos tradicionais atravessarem um momento crítico e de os jornais terem entrado numa fase de estertor, o jornalismo triunfa por todo o lado. Hoje deu-se algo de inesperado. Sem o menor aviso, caiu o governo. Poderia ser um facto capaz de produzir um verdadeiro abalo, se houvesse do outro lado ainda um povo realmente indisposto e não apenas divertido com a situação, ou distraído com outra coisa qualquer. Como em tudo, nos próximos dias, o choque desta inesperada ocorrência será intimidado pelos clichés e a ordem irá restabelecer-se. Talvez com outras moscas, provavelmente aumentando o nível do zumbido. Pela nossa parte, tivemos a oportunidade de falar com um desses raros heróis anónimos do nosso jornalismo. Repórter com um belo cadastro, autor de várias séries documentais, professor universitário, alguém que se bate ainda pela independência do jornalismo e pela sua capacidade de desmanchar os arranjinhos e esquemas do poder. Godinho tem as maiores suspeitas em relação ao mundo virtual, e esclarece que se "a imensa produção de informação digital parece celebrar a narrativização do mundo, no fundo destrói-a pelo excesso, tal como a massa de comentarismo repentista nos jornais, rádios e televisões vai destruindo a real possibilidade de interpretação que exige respeito, distância e reflexão". Este veterano do jornalismo de investigação não duvida de que "continua a haver jornalismo por todo o lado", mas vê-o de tal forma "desfigurado, desnaturalizado, esvaído ou monstrualizado", que se pergunta se, assim sendo, se pode ainda falar de jornalismo. Estamos na era dos que se deixam arrastar, e se o acto ainda é mais forte do que a palavra, Kraus recorda-nos que mais forte que o acto é o eco. "Vivemos do eco e, neste mundo às avessas, é o eco que desperta o grito." Hoje caiu um governo péssimo. Mas, se há uma coisa de que podemos estar certos, é que nos próximos meses as moscas do costume irão anestesiar-nos de tal modo que acabaremos por engolir algo ainda pior. Isto porque, "na organização do eco, a fraqueza é capaz de uma metamorfose extraordinária". 

Tuesday Oct 31, 2023

Entre os de papo cheio e os manga-de-alpaca que tornam os corredores ainda mais longos e bafientos neste regime miserando, vamos buscando quartos com os estores em baixo, onde "conferenciamos em surdina com as nossas almas, isto é, as peças dos equipamentos espatifados que os nossos inimigos nos deixaram" (Sean Bonney).  Quando se vai em campanha, o jornalismo é a actividade dos batedores, dos que desenham mapas à vista, e é certo que nos aprazaria partirmos daqui, mas só nos restam uns barcos desconjuntados, de proa levantada, enterrados na areia. Continuamos a escutar os que compuseram as suas ideias numa ordem tal que não deu para se ficarem pelas meias-tintas. Listamos cidades como eles faziam, as arruinadas ou as que ficam debaixo do véu da imaginação. Se não fomos a lado nenhum, chegámos à meia-idade com a sensação de que não podíamos estar mais longe de casa. Ainda falamos do sol e daqueles a quem hoje este faz mais falta, falamos dos amigos perdidos, de monotonia e de medo. "De colonialismo de ocupação, de capital e escravatura, dos setenta e nove bastardos reais que tapam a luz do Céu. Ora, o Céu que se lixe. (...) Nada nos resta a fazer senão acordar dos sonhos que temos de nós próprios e calcorrear a terra como reflexos dos fogos de artifício do Inferno." Só nos revemos no discurso daqueles que foram devastados intimamente ao ponto de se matarem, como Bonney, aqui na tradução de Miguel Cardoso do livro "A Nossa Morte", publicada pela Douda Correria. Quanto ao jornalismo, se não servisse apenas para nos afugentar daqui, deveria funcionar como o sistema imunitário democrático. Hoje é o contrário. Em vez de um quarto poder, é um elemento acessório através do qual se disseminam todo o tipo de vícios que atacam e corroem a inteligência, de tal modo que ao ler os títulos ao nosso alcance ficamos com a "suspeita de que foi para a encenação de um sacrifício já consumado que nos convidaram (…) e é como se ruísse um cenário com o estrondo de um mundo a sério, os escombros da imaginação tão perigosos como os da realidade" (Fátima Maldonado). Hoje o jornalismo mal consegue respirar debaixo da "obesidade da opinião". A sua função crítica entrou em falência quando escolheu adaptar-se à lógica do entretenimento, promovendo "a encenação de polémicas e debates que funcionam em circuito fechado, segundo uma tendência endogâmica, tautológica e mimética que atinge os cumes da exasperação quando há um acontecimento ou um assunto actual que polariza as atenções, e logo desaparece. O espaço jornalístico fica então dominado por um coro homogéneo e parece uma engrenagem autotélica que funciona para se alimentar a si própria", diz-nos António Guerreiro… "Cria-se assim a ilusão – uma das maiores ilusões do nosso tempo – de que este jornalismo cria um espaço público alargado, próprio de uma sociedade transparente, quando na verdade a reduz na sua amplitude e alcance." Enquanto isso, numa altura em que muitos se satisfazem com a indústria dos conteúdos oferecidos gratuitamente na internet, o ensaísta espanhol José Luis Pardo vinca como esta não tem feito outra coisa senão produzir "uma inflação da privacidade sem precedentes, uma exaltação do ego até limites inimagináveis. Por isso, é equívoco confundir essa hiperesfera egolátrica com uma ‘esfera pública ampliada’". Para reflectir sobre isto, reunimo-nos com Nuno Ramos de Almeida, veterano já todo cicatrizado desta guerra, e alguém que vai sendo promovido e despromovido consoante as ondas que chegam à praia, e que parece desses tipos amarrados ao mastro da própria profissão, caindo em todas as armadilhas, engolindo as tempestades, sentindo na pele os efeitos da perda de poder e autonomia desta classe que, antes dos médicos e enfermeiros ou dos professores, foi proletarizada e sucessivamente humilhada.

© 2024 Enterrados no Jardim

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