Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

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Episodes

Monday Nov 13, 2023

Este é o primeiro episódio sem a Joana, que não quis mais andar por este jardim cativo de uma feira bruta com menos diversões que tormentos. Bateu com a porta, por isto e por aquilo. Fica-nos esta necessidade de remorso que não altera nada, e se o mais indicado talvez fosse cumprir um certo luto, para quê vir agora observar protocolos quando até aqui o impudor foi o único heroísmo a que nos entregámos, lavando em público a roupa suja da época. Coube ao Frederico Neves Parreira pegar na outra pá, e é possível que isto agora se pareça um pouco com uma canção entre dois bêbados aos encontrões, tentando lidar com essas ondas de vazio e destroços que se aproximam de nós na saliva e dali saem em pleno mar. O mau hálito da realidade noticiosa hoje passa por nós e deixa-nos completamente desafinados, somos sacudidos e vamos de emoções fulgurantes a uma indiferença absoluta em poucos minutos, e sofremos intimamente esse efeito de desagregação por vermos todos os domínios justapostos sem que os contrastes fiquem claros. Desde as notícias em que o sangue bebe o sangue na Palestina ou nesses quintos de infernos ucranianos, à telenovela politiqueira lusa a querer interpor-se com todo o seu patetismo, as indignações teatrais, cenas de tragicomédia para as carcaças do costume prosseguirem gaguejando o seu latim, indispondo-se, dando-se ares, tornando a língua uma coisa cheia de nós, toda essa cáfila que não desampara a loja, tudo entrecortado por anúncios de perfumes com raparigas a desabotoar os corpetes seguido de reportagens sobre catástrofes ecológicas lado a lado com o último salão do automóvel. E, assim, como nos diz Peter Sloterdjik, os nossos cérebros vão sendo treinados a sobrevoar com o olhar um campo de indiferenças de uma amplidão enciclopédica – em que o assunto tratado não é indiferente em si mesmo mas pela sua integração no fluxo de informações dos media. Neste episódio vamo-nos entregar a essa coluna de pó como se fora levantada por um exército invasor. Depois de termos já escavado algumas trincheiras, distribuído bacamartes pelos tantos reflexos que nos preenchem a solidão, o combate passa antes de tudo por reconhecer como aquilo que está a ceder é a própria realidade. A marcha do progresso transfere-nos para o campo da virtualidade em que tudo se processa a uma velocidade que por si só nos derrota. "E é esse tempo de vida que permite a contínua passagem de uma situação para outra e o esquecimento da situação anterior", como notou Rui Nunes. "A velocidade a que se move o virtual impede a fixação no real, que é dolorosa. Ao passo que a virtualidade é muito menos dolorosa e demora muito menos. Passa-se muito rapidamente de uma para a outra e rapidamente se esquece a anterior. A fixação do real importuna. Um tipo parece que vive num universo em que a dor, a morte, o silêncio, estão a ser rasurados ou afastados da presença, estão a ser despresenciados. O que acontece é que essa ausência da presença leva também à ausência do discurso sobre eles." Neste esforço para relançar o jogo, em vez de nos ficarmos por anjos e demónios, vamos tentar compreender como mesmo as nossas ficções mais baratas remetem para as representações de um bicho papão que, desta vez, vai mesmo levar-nos.

Tuesday Nov 07, 2023

Agora que todos os raciocínios são trincheiras, que um homem que se dê ao trabalho de pensar por si ver-se-á empurrado para as catacumbas de si mesmo, sendo condenado ao isolamento, agora que a quantidade impede qualquer revolta contra ela, quem se esforça por dizer palavras verdadeiras não consegue evitar soar ridículo. Ainda andamos de volta dos jornais, guiados pelos avisos de Karl Kraus contra essa "magia negra", sendo que este se deu conta um dia de que a vida já não passava de uma cópia da imprensa: "A imprensa é um mensageiro? Não, é o acontecimento. É um discurso? Não, é a vida. Ela não só reivindica que os verdadeiros acontecimentos são as suas notícias sobre os acontecimentos como também provoca essa sinistra identidade que gera sempre a ilusão de que as acções são relatadas antes de executadas"... Um século depois de a humanidade ter sido empurrada para uma guerra mundial, hoje a guerra disseminou-se e afecta todos os aspectos das nossas vidas. "O mundo está ensurdecido pela cadência", prosseguia o satirista vienense. "Estou convencido de que as coisas já nem sequer acontecem, antes continuando os clichés a trabalhar sozinhos. (...) A coisa está podre por obra da linguagem. O tempo já cheira mal de tanta frase feita." Mas o pior é que esse regime de substituição da vida pelos lugares comuns e pelas frases feitas não se contém na imprensa, assaltou todos os aspectos da cultura, de tal modo que, como assinalou António Guerreiro, um dos paradoxos do nosso tempo liga-se ao facto de, apesar dos géneros jornalísticos tradicionais atravessarem um momento crítico e de os jornais terem entrado numa fase de estertor, o jornalismo triunfa por todo o lado. Hoje deu-se algo de inesperado. Sem o menor aviso, caiu o governo. Poderia ser um facto capaz de produzir um verdadeiro abalo, se houvesse do outro lado ainda um povo realmente indisposto e não apenas divertido com a situação, ou distraído com outra coisa qualquer. Como em tudo, nos próximos dias, o choque desta inesperada ocorrência será intimidado pelos clichés e a ordem irá restabelecer-se. Talvez com outras moscas, provavelmente aumentando o nível do zumbido. Pela nossa parte, tivemos a oportunidade de falar com um desses raros heróis anónimos do nosso jornalismo. Repórter com um belo cadastro, autor de várias séries documentais, professor universitário, alguém que se bate ainda pela independência do jornalismo e pela sua capacidade de desmanchar os arranjinhos e esquemas do poder. Godinho tem as maiores suspeitas em relação ao mundo virtual, e esclarece que se "a imensa produção de informação digital parece celebrar a narrativização do mundo, no fundo destrói-a pelo excesso, tal como a massa de comentarismo repentista nos jornais, rádios e televisões vai destruindo a real possibilidade de interpretação que exige respeito, distância e reflexão". Este veterano do jornalismo de investigação não duvida de que "continua a haver jornalismo por todo o lado", mas vê-o de tal forma "desfigurado, desnaturalizado, esvaído ou monstrualizado", que se pergunta se, assim sendo, se pode ainda falar de jornalismo. Estamos na era dos que se deixam arrastar, e se o acto ainda é mais forte do que a palavra, Kraus recorda-nos que mais forte que o acto é o eco. "Vivemos do eco e, neste mundo às avessas, é o eco que desperta o grito." Hoje caiu um governo péssimo. Mas, se há uma coisa de que podemos estar certos, é que nos próximos meses as moscas do costume irão anestesiar-nos de tal modo que acabaremos por engolir algo ainda pior. Isto porque, "na organização do eco, a fraqueza é capaz de uma metamorfose extraordinária". 

Tuesday Oct 31, 2023

Entre os de papo cheio e os manga-de-alpaca que tornam os corredores ainda mais longos e bafientos neste regime miserando, vamos buscando quartos com os estores em baixo, onde "conferenciamos em surdina com as nossas almas, isto é, as peças dos equipamentos espatifados que os nossos inimigos nos deixaram" (Sean Bonney).  Quando se vai em campanha, o jornalismo é a actividade dos batedores, dos que desenham mapas à vista, e é certo que nos aprazaria partirmos daqui, mas só nos restam uns barcos desconjuntados, de proa levantada, enterrados na areia. Continuamos a escutar os que compuseram as suas ideias numa ordem tal que não deu para se ficarem pelas meias-tintas. Listamos cidades como eles faziam, as arruinadas ou as que ficam debaixo do véu da imaginação. Se não fomos a lado nenhum, chegámos à meia-idade com a sensação de que não podíamos estar mais longe de casa. Ainda falamos do sol e daqueles a quem hoje este faz mais falta, falamos dos amigos perdidos, de monotonia e de medo. "De colonialismo de ocupação, de capital e escravatura, dos setenta e nove bastardos reais que tapam a luz do Céu. Ora, o Céu que se lixe. (...) Nada nos resta a fazer senão acordar dos sonhos que temos de nós próprios e calcorrear a terra como reflexos dos fogos de artifício do Inferno." Só nos revemos no discurso daqueles que foram devastados intimamente ao ponto de se matarem, como Bonney, aqui na tradução de Miguel Cardoso do livro "A Nossa Morte", publicada pela Douda Correria. Quanto ao jornalismo, se não servisse apenas para nos afugentar daqui, deveria funcionar como o sistema imunitário democrático. Hoje é o contrário. Em vez de um quarto poder, é um elemento acessório através do qual se disseminam todo o tipo de vícios que atacam e corroem a inteligência, de tal modo que ao ler os títulos ao nosso alcance ficamos com a "suspeita de que foi para a encenação de um sacrifício já consumado que nos convidaram (…) e é como se ruísse um cenário com o estrondo de um mundo a sério, os escombros da imaginação tão perigosos como os da realidade" (Fátima Maldonado). Hoje o jornalismo mal consegue respirar debaixo da "obesidade da opinião". A sua função crítica entrou em falência quando escolheu adaptar-se à lógica do entretenimento, promovendo "a encenação de polémicas e debates que funcionam em circuito fechado, segundo uma tendência endogâmica, tautológica e mimética que atinge os cumes da exasperação quando há um acontecimento ou um assunto actual que polariza as atenções, e logo desaparece. O espaço jornalístico fica então dominado por um coro homogéneo e parece uma engrenagem autotélica que funciona para se alimentar a si própria", diz-nos António Guerreiro… "Cria-se assim a ilusão – uma das maiores ilusões do nosso tempo – de que este jornalismo cria um espaço público alargado, próprio de uma sociedade transparente, quando na verdade a reduz na sua amplitude e alcance." Enquanto isso, numa altura em que muitos se satisfazem com a indústria dos conteúdos oferecidos gratuitamente na internet, o ensaísta espanhol José Luis Pardo vinca como esta não tem feito outra coisa senão produzir "uma inflação da privacidade sem precedentes, uma exaltação do ego até limites inimagináveis. Por isso, é equívoco confundir essa hiperesfera egolátrica com uma ‘esfera pública ampliada’". Para reflectir sobre isto, reunimo-nos com Nuno Ramos de Almeida, veterano já todo cicatrizado desta guerra, e alguém que vai sendo promovido e despromovido consoante as ondas que chegam à praia, e que parece desses tipos amarrados ao mastro da própria profissão, caindo em todas as armadilhas, engolindo as tempestades, sentindo na pele os efeitos da perda de poder e autonomia desta classe que, antes dos médicos e enfermeiros ou dos professores, foi proletarizada e sucessivamente humilhada.

Thursday Oct 19, 2023

Nove séculos depois, com tanto desaire, tantos tombos e ilusões a naufragar neste sangue, está difícil vir tirar do prego as três sílabas que em tempos cunhámos em cobre e nos foram devolvidas em plástico, esta vaga pertença sobre a qual vemos acumularem-se juros impossíveis de saldar na loja de penhores inglesa onde a deixámos, temporariamente apenas, só enquanto nos curávamos de outra carraspana. De lá para cá, ficou tudo a preto-e-branco, só do estrangeiro é que ainda apanhamos uma emissão a cores. Este país que é uma imensa culpa, mais que só um remorso, esta dívida transmitida entre as gerações, e com tanta dificuldade em explicar porquê. A viagem medonha terminou, mas o enjoo persiste, o desequilíbrio nos sentidos, a sensação de que o mar não são lágrimas, mas um vómito de séculos. E então voltamos ao tombadilho, procuramos um capitão desde o último episódio em que houve um sinal de coragem, de força, e de súbito vem-nos a sensação de que se Portugal alguma vez teve algum fulgor, isso deu-se nos momentos em que se viu lançado numa visão recém-descoberta de si mesmo, uma espécie de heresia contra o repertório de atitudes cínicas, a tacanhez auto-indulgente, a cobardia oficial, os protocolos achincalhantes e essa desgraçada reputação que sempre nos precede. Um forte murro nas trombas pode ser o gesto mais fraterno quando vivemos apoiados num sonho a cair de podre. “Porque chega o momento/ em que até o sonho é uma ironia/ e o despertar um simulacro”, como notou Juarroz. De Abril foi resistindo um género de bazófia popular, como se aquele povo miúdo tivesse despertado certa manhã todo audacioso, com vontade de pedir contas por décadas de tirania e aviltamento. Para não nos perdermos nesse nevoeiro por onde se vai retomando os mesmos passos desolados, quisemos ouvir por uma vez um dos nossos capitães, Carlos Matos Gomes, um homem que persiste à margem dessas bêbadas fantasmagorias, lúcido e desafiador, sem receio de confrontar o passado nem de descompor as tretas que alinham para o nosso consumo diário, para não deixar que no futuro ninguém coza de vez esta tremenda bebedeira. Fomos ouvir este coronel reformado, escritor (assinando com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz) e um dos autores mais empenhados em garantir que algum dia despertamos deste estado de estupor para sabermos o que fomos, que coisas fizemos, antes de nos rendermos a esta condição de menoridade, de apatia, de servidão alegre e voluntária.

Thursday Oct 12, 2023

Mesmo entre os que ainda pegam num jornal para o ler, em vez de logo o enrolarem para enxotar alguma mosca, há gente que só lê as páginas de desporto, outros só lêem as páginas de sucessos, outros dedicam-se aos horóscopos, alguns preferem as palavras cruzadas, e há também aqueles que vão direitinhos aos necrológios. Apesar de tudo, há ainda muita gente que não sabe ler, e, entre os que dizem que sabem, tantos passam ao lado de tudo o que importa, mas vão interiorizando a ideia de que é inútil resistir, travar alguma luta, preferindo entreter alguma esperança absurda. Quem sabe serão resgatados às suas vidas por um prémio do euromilhões, ou talvez os alienígenas venham pôr ordem nesta porra triste. Seja como for, proliferam a superstição, o mindfulness e outras terapias new age, todo esse catálogo de soluções às quais os impotentes recorrem. Mas a grande desilusão do nosso tempo é, sobretudo, política, e este é o cenário de uma distopia em que as próprias gerações mais novas e mesmo as classes mais desfavorecidas parecem incapazes de produzir surpresas. Numa altura em que é mais fácil supor que uma greve anímica, uma espécie de inércia bartlebyana ou um virar de costas e abandono depressivo possa ser ainda o único pacto que venha a apontar um caminho, estávamos a precisar de uma outra perspectiva sobre as alternativas, e virámo-nos para Diogo Duarte, um tipo que não se limita a rezar por um milagre negativo, nem espera grande coisa do jornalismo, mas que assume que quando destapou o horizonte o fez através do punk-hardcore, antes de se meter pela antropologia, tendo publicado há semanas o livro “O Anarquismo e a Arte de Governar”, a partir da sua tese de doutoramento sobre aquele movimento operário que não precisa de ir mais longe, e que conta com três décadas fulgurantes entre nós, um período que tem sido útil esquecer até para lhe fixar essas caricaturas toscas, mas tão persistentes. Se, hoje, a primeira coisa que se nos impõe é conseguir, de algum modo, tirar as forças reaccionárias das nossas cabeças, ele vem falar-nos da dimensão prefigurativa do anarquismo, a noção de que a prática revolucionária colectiva tanto como a nível individual passa por sabermos viver já de acordo com essa nova sociedade pela qual ansiamos.

Monday Oct 02, 2023

Em breve a dor será tida como uma substância ilícita, devendo ser erradicada em regime preventivo com recurso a uma panóplia de fármacos, desde logo estabilizadores de humor. E quem a ela responder em público será alvo de punição. Não há direito a incomodar os que estão a gozar os benefícios de uma existência radiante, e não merecem ser confrontados com o desmazelo dos que se recusam a cumprir com o programa. Está em fase de teste a vacina contra todo o tipo de sofrimentos, os físicos e sobretudo os de ordem da consciência. Como se sabe, "quando dói demais endoidece-se". Por essa razão, o programa de saúde mental forçada manda extirpar essas formas de apreensão degenerada da realidade. Era evidente onde tudo isso nos levaria. Dos relatos de alguns que se recusaram a fazer os tratamentos, têm sido colhidas amostras desse género de desespero que vinha envenenando as nossas produções líricas. De um dos sujeitos que escondia os comprimidos debaixo do colchão, recolhemos o seguinte testemunho: "Músculos tensos, grito parado, a inquirição prossegue por entre camadas de angústia cerrada. Fura, brita, escava, alonga túneis por onde avança o corpo cercado. Por vezes tem a espessura de montanhas, muros sobre muros que não acabam." O livre arbítrio provou ser uma empreendimento ruinoso, e os accionistas exigiram medidas de contenção. Como registo o nosso paciente, "o maior problema das crises económicas é serem sempre o princípio de uma crise moral. A razão é muito simples: a moral é cara e sustentá-la tende a ser considerado desperdício". Assim se provou que era preciso revirar, desfigurar e, por fim, dar cabo da moral. Aos que continuarem a resistir aos nossos paraísos distractivos, poderá ser instrutivo irem passar uns dias em observação daqueles que temos na condição química natural, e sujeitos a cativeiro. Não lhes é dado mergulhar no êxtase químico. Temos poetas para redigirem as bulas. Depois há esses que precisam ser esmagados, com as suas convicções grotescas, os seus escritos odiosos, as suas formas de organização terrorista. Considere-se o conteúdo de uma nota retirada do diário de um deles: "Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar."[Os excertos citados são da autoria do nosso convidado.]

Wednesday Sep 27, 2023

Eça de Queiroz dizia que na sonolência enfastiada em que vivemos, num país onde a vitalidade humana apenas se conserva num egoísmo feroz e numa devoção automática, não nos é dado aspirar a uma existência propriamente, mas tão-só a alguma forma de expiação. Agora os abutres de serviço dizem-se muito empenhados em honrá-lo, mas vão-se esquecendo como, no ambiente de decadência endurecida que é o nosso, ele fez de tudo para abrir um caminho à bordoada, empenhado em ver se haveria um modo de pôr a galhofa ao serviço da justiça. Seria assim de elementar justiça vir lembrar as nossas aves necrófilas que, neste regime em que as mesmas consciências que certificam a podridão depois também revelam um temperamento que se dá maravilhosamente nessa mesma podridão, as honras na verdade só desonram. Mais valia que lhe desenterrassem os restos e o apedrejassem numa sessão com real poder evocativo. Se há uma linha de demarcação de que nos podemos servir para distinguir os poucos que não vêem a vida cultural como uma carreira diplomática debaixo da bandeira do seu próprio ego, essa linha será o conhecimento do inferno, ou pelo menos a forte suspeita de que estamos mergulhados nalguma confluência dos seus círculos. Agamben regista um curioso rumor que ouviu numa das suas passagens por Roma, com alguém a defender que a terra seria o inferno de um outro planeta desconhecido e que a nossa vida não é mais que o castigo que os condenados de lá padecem pelos seus pecados. E se a hipótese não pareceu inteiramente descabida ao filósofo italiano, o seu único motivo de perplexidade era tentar enquadrar nesse cenário alguns aspectos consoladores a que ainda vamos tendo direito, como o céu e as estrelas e o canto dos grilos… Seria uma harmonia desnecessária, a não ser, aventava ele, que se acredite que, para a pena ser ainda mais atroz e subtil, o inferno tenha sido colocado a uma distância enganadora do paraíso. Esta vizinhança renovaria um certo ímpeto sonhador, estendendo uma esperança apenas para que cada um fosse lançado uma e outra vez nesse abismo que se abre dentro de nós. Mas esta noção parece distante da maioria das pessoas que se servem da cultura como distracção, desses números que crescem e se rendem a tudo numa adulação nervosa e imbecil. Numa das suas crónicas, Eugénio Lisboa faz-nos ver a audácia que seria necessária hoje para interromper este ambiente de tepidez mole, e justamente aponta o exemplo de um crítico, o dadaísta Jacques Vaché, que, certa noite, subiu ao palco de um teatro parisiense, puxou de um revólver e ameaçou disparar contra quem quer que se atrevesse a aplaudir a peça. O aplauso tornou-se, entre nós, a reacção imediata de um público que se habituou a essa diluição no que quer que lhe metam à frente. Pelo contrário, este nosso convidado é hoje dos poucos autores entre nós que, sem qualquer traço de bazófia, poderia apropriar-se daqueles dois versos estupendos de Nemésio:  "A minha vida está velha/ Mas eu sou novo até aos dentes." Mantém-se por aí, honrando a sublime brutalidade da vida, com a sua prosa desprendida, do lado de uma cultura exaltante, redigindo crónicas que não atraiçoam o encanto com que se foi fazendo um leitor inveterado desde cedo, e, por isso, também sem muita paciência para os enredos da banha da cobra, capaz de gritar ainda que o rei vai nu, com a insolência e o gozo imprecativo que é próprio dos miúdos. Foi a melhor forma de arrancarmos com a segunda temporada deste podcast, depois de alguns desaires, férias desgraçadas, filmes de terror em hospitais, o real quotidiano à portuguesa, no século XXI.

Sunday Sep 03, 2023

Com o transplante da existência para os domínios virtuais, o mais difícil é fazê-los acreditar na realidade. Vivem asfixiados em poços cegos, consumidores de juízos alheios, imersos num zumbido que se torna o predador engendrado pela espécie contra si mesma. São essas ficções infindáveis nas quais em vão procuramos qualquer coisa real para dar ao dente. Apetece citar Ernesto Sabato no seu Relatório Sobre Cegos: “Sempre me fez rir a falta de imaginação desses senhores que julgam que para descobrir uma qualquer verdade é necessário dar aos factos ‘as devidas proporções’. Esses anões imaginam (também eles têm imaginação, claro, mas uma imaginação anã) que a realidade não ultrapassa a sua própria altura, nem é mais complexa que o cérebro de uma mosca. Esses indivíduos que a si mesmos se classificam de ‘realistas’, porque não são capazes de ver para lá dos seus próprios narizes, confundindo a Realidade com um Círculo-de-Dois-Metros-de-Diâmetro com centro na sua modesta cabeça. (...) Como se alguma vez na história da humanidade tivesse acontecido algo de importante que não tivesse sido um exagero, do Império Romano a Dostoievski.” E, contudo, vez por outra surgem-nos relatos que mergulham a fundo nestas águas, como acontece no trabalho de José Miguel Gervásio, pintor e escritor, alguém que suporta em si mesmo essa complexa dualidade de um criador e um destrutor, um fantasista e um céptico, um lírico e um cínico. O seu livro mais recente, “Não são para valsas todas as noites”, larga-nos no meio de uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme e quase insensata, tudo tão perto de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita. Para sermos mais justos na apreciação daquela novela teríamos de falar numa poesia do quotidiano feérico nessas províncias que se permitem um sobre-realismo em que todas as 'imagens' dos outros se volvem mitos caseiros de prodigiosa dinâmica pícara. Eduardo Lourenço escrevia a propósito de um outro livro algo que merece ser reaproveitado para este, de forma a colmatar o vazio crítico de que se viu cercado depois de ter saído dos prelos. "É possível que esta obra tão vertiginosa e desconchavada não tenha mais futuro literário que um passado ainda não inteiramente digerido pela ficção nacional sempre acolhedora para as audácias falsas ou verdadeiras da estranja, mas pouco sensível para a dos inconformistas nacionais. De qualquer modo, o exemplo da sua provocação intrínseca e não meramente decorativa, como imaginariam os críticos, e isto paralelo ao da inspiração desbragada, de tradição caseira, do mais marginal dos nossos autores, Luiz Pacheco, constitui uma referência viva contra toda a possível domesticação do imaginário lusíada”. Se acham que exageramos, fica o desafio: vão ler, façam a prova dos nove, e logo falamos. 

Tuesday Aug 15, 2023

Antes de irmos de férias (ou melhor, antes de vos darmos um período de tréguas), no nosso vigésimo episódio regressamos àquela que é em grande medida a casa da partida, casa de ecos pingados numa música de câmara ardente, casa cheia das marcas de velhos inquilinos, dos que não morrem sem dar luta, e que deixam para trás algum prego só deles, num canto uma ruinazinha que não há maneira de sabermos como resolver. E é com o Changuito que voltamos a ser relembrados daquelas noções mais básicas de como se entra num espaço que não se rendeu aos imperativos dos guias turísticos nem ao regime das atracções desse absurdo desgostante e que passa por vulgar e normal, com ânsia de atrair os turistas em busca da confirmação das suas noções redundantes. Na Poesia Incompleta somos relembrados do que é uma livraria pelo livreiro que há uns anos traduzia estes versos de José Maria Zonta, e que merecem que se restabeleça o paralelo entre aquele espaço defendido do espalhafato da feira geral e uma mulher desejada que defende a sua intimidade: "Não entrar como turista no coração de uma mulher// fazendo fotos/ deixando latas de cerveja/ procurando só catedrais imensas/ e estátuas transparentes// com a mochila cheia de mapas/ e fazendo comida rápida// há um país/ sete cidades/ uma cordilheira e um inverno/ no coração de uma mulher// não bebas só um copo de mar ali// não entres no avião/ apanha o comboio da meia lua// não reveles ali as tuas fotos em uma hora// se não estiver muito frio entra nu// não leves guarda chuva// e sobretudo não cortes árvores no coração de uma mulher/ não costumam voltar a crescer." A paixão tem muito a ver com tudo isto, e esta livraria tem esse esmero fabuloso de um espaço onde circula uma moeda com uma cunhagem muito particular, sendo aquele um território invisível para quem anda por aí a roçar-se em tudo o que é muro com mijo pelas entrelinhas, poetaria aos malhos exaltando os poderes para isto e para aquilo da palavra, falando em cicatrizes, feridas de guerra deixadas por um ou outro verso. Às vezes dá a sensação que o que se nos depara na maioria dos casos são já voodusices, messianismos de fraldiqueiros, as piroseiras de quem anda há meses ou mesmo há anos sem cortar as unhas à sentimentalidade. Se nós e as nossas histórias como as nossas almas passamos por um processo de permanente decomposição e reinvenção, é bom termos um espaço que se desdobra como um incontrolável manuscrito para não nos ficarmos só pelo assédio incessante das máquinas de lavar e baralhar a já tão quebrada louça que vamos tentando reunir sobre a mesa.

Tuesday Aug 08, 2023

Nos jornais diários e nos espaços de comentário onde todos os dias a realidade desaparece, enquanto o prestidigitador anda às voltas com ar atarefado a cozinhar uma sopa da pedra na cartola, lá vem a telenovela da anestesia com as catástrofes já habituais: juros da dívida em crescimento, novo corte de salários e pensões, aumento do desemprego, e o administrador de um hospital público que faz contas sobre o que fica mais barato – amputar pernas ou colocar próteses. À margem, num canto discreto, houve ainda espaço para uma pequena notícia. O Instituto Nacional de Estatística anunciou projecções demográficas: em 2060 os actuais 10,5 milhões de habitantes de Portugal serão 6,3 milhões, o país perderá 40% da população em 46 anos, o actual índice de 131 idosos por cada 100 jovens será de 464 por 100, a população activa, com idades entre os 15 e os 64 anos, passará de 6,9 para 3 milhões, os 1,5 milhões de jovens com menos de 15 anos serão apenas 587 mil. Boas notícias, portanto. Estamos quase a conseguir desratizar o país para finalizar a sua adaptação a resort para turistas e lar de idosos para estrangeiros com reformas em condições. Entretanto, e para ajudar no desbaste, caiu por aí Manuel Bivar como um cometa a tocar pandeireta e deixou o meio literário português de pantanas, tendo levado a que os grandes engenheiros do "comércio" de papelinhos sujos de tinta se rendessem, com Carlos Vaz Marketing a exclamar: "Se eu não morresse nunca, e eternamente gramasse estes pastelões que vos impinjo, mesmo assim não tiraria do corpo o cheiro deste livro". Por sua vez, Raquel Marinheiros deixou de se atirar ao chão a fingir a falta para a fotografia no Insta do poema ensina a cair, e admitiu: "O meu Tinder para puetas nunca rendeu tanto. Que se lixem os versinhos, estou farta de punheteiros". Também o ex-director da Vida Soviética e editor de folhetos informativos de tudo o que para aí vai de literatura afrodisíaca, Manuel Alberto Valete não se conteve e a respeito de "A Charca" disse: "É o que eu chamo viagra para defuntos. Transforma um cemitério num prado cheio de cogumelos". Por seu lado, Afonso Reis Cabroxa conseguiu por fim assumir-se: "Dava o cu e os três tostões que sobraram do prémio leya para escrever assim". Também Matilde Campina interrompeu a gravação de um anúncio e fez saber isto: "Nem no Tibete, quando fui lá soprar o pavio do Dalai Lama, me senti tão iluminada". Na zona das chegadas do aeroporto, pudemos também recolher uma declaração da Isabel Lélélucas: "Li [A Charca] num avião que estava a aterrar vindo de New York. Tive vontade de apontar o garfo de plástico à hospedeira, entrar no cockpit e mandar aquela merda contra os Jerónimos". Ainda na secção dos decapitados da crítica, José Mário Salsa andava por ali a murmurar: "Já não há estrelas no céu depois de eu e o Pinto Santos termos torrado tudo com escribas inconsequentes e de que ninguém se lembra. Mais valia ter gasto com freiras. Depois de tanta crítica encomendada, desta vez vou pôr um anúncio no jornal: eu vi a luz em uma casa de banho perdida. Li este livro de uma assentada, na retrete. Não limpei o cu, não vou fingir mais". Por fim, à saída dos estúdios de Carnaxide, à espera de ser levado para dentro e lhe apontarem uma câmara à fuça mal fosse anunciada outra greve de professores, António Carlos Cortesias sentenciou: "Cada um carrega a sua cruz. Depois do Gastão, a ver se me restam forças e desta vez me lanço numa carreira de cantor pimpa. Quanto ao livro do Bivar, fiz-lhe a maior homenagem de que sou capaz: não li."

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