Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

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5 days ago

“Se a estupidez não se assemelhasse, a ponto de se confundir, com o progresso, o talento, a esperança ou o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser estúpido”, isto foi notado por Musil, mas adiantaríamos que a característica que distingue a estupidez produzida pelo nosso tempo é esta: a sua adequação às próprias noções de sucesso. Afinal, este é um tempo que se destinou ao desastre, e, assim sendo, é natural que as hierarquias nos ponham diante de autênticas conspirações de estúpidos. Só se afirmam esses seres incapazes de uma consciência clara do ridículo das suas existências. Triunfo é uma forma de fanatismo de si mesmo. Essa é a única promessa que o homem contemporâneo é capaz de se fazer, a de que, se o mundo o contrariar, está legitimado para dar cabo dele. Nas promessas que o homem se faz, o mundo foi-se tornando cada vez mais um empecilho, algo inconveniente, e daí que os estúpidos se tenham encarregado de triturá-lo aos poucos, obtendo um lucro fabuloso nessa operação. Olhamos ao nosso redor e toda a existência humana parece estar prometida a este projecto, e todos se mostram imensamente confiantes com o progresso da operação. Na verdade, esta completa falta de noção do ridículo é aquilo que garante que qualquer esforço de crítica seja visto como uma forma de pretensiosismo, uma atitude própria de quem está apostado em perturbar o curso da evolução histórica. No fundo, os estúpidos somos nós. E esta inversão extraordinária garante, pelo caminho, que já ninguém possa ser chamado à razão. O efeito de intimidação é de tal ordem que são cada vez mais escassos os pensamentos que respondem a esta conspiração através da recusa das suas orientações, até porque a linguagem mesma tornou-se imensamente pantanosa, os termos e os conceitos viram-se apropriados pela estupidez, pelos seus valores contagiosos, por essa inversão do sentido, de tal modo que quem questionar seja o que for obriga-se a um exame de tal modo implicante que a maioria se perde, distraindo-se com outra coisa. Qualquer letrado, ao introduzir a suspeita e afastar-se do idiolecto imbecilizante e inteiramente recamado na forma de frases feitas, transforma-se de imediato num ser incómodo, e é ele que atrai sobre si a rejeição dos demais. Hoje, cada escritor que viole esse circuito de noções desastradas vê-se transformado no artista da fome, recusando esse venenoso sustento, apresentando-se na figura do protagonista de um conto de Kafka que exibe como espectáculo o seu jejum prolongado, e que tem de fazer um esforço absurdo para que o público não escolha outro entretenimento. É o próprio destino horroroso que temos diante de nós aquilo que estranhamente nos hipnotiza e atrai. Não conseguimos recusá-lo, pois isso significaria travar uma luta apenas para adiar algo que parece estar inscrito nos sonhos da espécie. Há um desejo cada vez mais desinibido pelo desastre. Como nos diz Pascal Quignard, “matar-se é a paixão específica da espécie homo, fazendo jorrar o seu sangue negro, o seu vírus, a sua virtus, opondo-se às outras feras, nas quais a predação é simplesmente suscitada pela presa que as saciará, e também imediatamente saciada na medida em que a sua fome fora rigorosamente suscitada”. Arrancámo-nos à natureza, e esta dissolveu-se dentro de nós. Agora estamos cativos de uma irresolução permanente, de uma fome insaciável. “As centenas de milhões de ecrãs que cobrem o planeta transformaram-se no novo órgão fascinante, substituindo sacrifícios e ritos, multidões peregrinas, massas espezinhantes. É a sedentarização final. É o progrom tornado imóvel. Se o espectáculo não apazigua inteiramente a fruição horrorizada que este suscita, pelo menos crava no lugar o espectador que examina o sangue a escorrer. Faz daqueles que sidera presas com moradas, documentos de identificação, cartões bancários, vítimas numeradas, corpos sentados e petrificados susceptíveis a todas as extorsões e a todas as pilhagens. (…) O ódio, uma vez tornado imóvel a esse ponto, transforma-se em medo. O medo, esse companheiro único do desejo, confinado na sedentariedade e na propriedade fundiária, é reformulado como angústia. Essa angústia procura protecção junto do poder que ela mesma delegou ao pavor para conter o seu assombro, no qual consente como se não lhe pertencesse sob a forma de obediência, de liberdade mortificada, de imobilidade psíquica, de indolência social. Aquilo a que as democracias chamam política, desde o início deste século, olvidando o horror do século que precedeu este novo século, está a cometer o erro de criminalizar a contestação que as fundamenta e que deveria agitá-las até ao tumulto para as manter vivas.”

Friday Jun 14, 2024

“Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista”, dizia há dias Jorge de Sena, um dos últimos que arrancou a voz dos sepulcros e do nosso conformismo para dizer alguma coisa num discurso do 10 de Junho que nos fizesse ferver o sangue. O que é próprio de um bando de filhos da puta é este “desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião.” Não venham cá erguer castelos de areia e falar de quintos impérios bafientos, tudo o que temos diante de nós e que se publicita enquanto espaço literário ou até, de forma mais abrangente, como campo cultural, são repetições do de sempre, modos de refocilar na pasmaceira, nesse rigorismo das fórmulas que melhor se reproduzem, se perpetuam, deixando uma margem ínfima para que algo de outra ordem possa despontar e reclamar posições, fazer ouvir uma outra música. O destino de todos os gestos vigorosos no campo artístico deveria ser o de contrariar a sufocação, produzindo uma dissidência. O verdadeiro apelo que lança o poeta passa por multiplicar os caminhos, defender a diferença de uma poesia que “não se quer mero exercício literário, mas aventura em que a vida se joga por inteiro” (Cesariny). Hoje começamos por não saber nada de mais profundo sobre nós, não sabemos quantos somos, nem o que nos liga aos que vieram antes. Vai triunfando uma forma de psicose em que cada um investe tudo em si mesmo apenas para se dar conta de que, com isso, apenas colabora num regime de passividade, cada um encerrado como uma larva no casulo, prometendo-se metamorfoses radiantes, mas que se fica por isso mesmo, um eterno desfiar de ilusões inconsequentes, uma distracção em linha com a total ausência de reacções perante a guerra que tomou conta de todos os aspectos da vida em sociedade, desse regime de competição que, curiosamente, produz uma forma massiva de “desvirilização” através da qual os homens se transformam numa espécie de “ovelhas conscientes e resignadas ao abate” (Hollier). Perante este quadro, há uma urgência de recomposição num momento em que tudo serve para nos convencer que não nos é possível afectar uma mudança radical das circunstâncias em que vivemos. Vemos como tudo aquilo que se programa, todas as iniciativas e propostas, servem para arruinar qualquer ímpeto colectivo, qualquer comunidade, separando os grupos dos meios de existência e dos saberes a que estão ligados. Assim, damo-nos conta de que é essa a motivação política que está presente em todos os contextos, contagiando as reles formas de agitação que são próprias de uma cultura reificada, sempre disposta a emular a ofensiva da mediação mercantil que se impõe sobre todas as relações. Para sair disto é necessária uma indisposição de todo o tamanho. Para destruir essa forma de reprodução de si mesmo, os discursos que excitam os consumos e nos oferecem essa versão aguada e impotente das antigas mitologias, esse culto de umas celebridades patéticas e indistinguíveis umas das outras. É preciso revirar o consumo, acicatar um ódio nessa vertigem para a qual aponta Deleuze: “Basta que o ódio seja suficientemente vivo para que dele se possa extrair alguma coisa, uma grande alegria, não de ambivalência, não a alegria de odiar, mas a alegria de querer destruir o que mutila a vida.” Também Michaux não dispensava esse modo de se relacionar que cresce a partir de uma repulsa e nos diz tanto sobre o outro como sobre nós, e falava nessa forma de repúdio que afina a insurreição começada cá dentro: “Preciso de ódio, e inveja, é a minha saúde./ Preciso de uma grande cidade./ Um grande consumo de inveja.” Podemos também seguir de perto e exclamativamente Mário de Andrade e a sua ode ao burguês: “Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!/ Oh! purée de batatas morais!/ Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!/ Ódio aos temperamentos regulares!/ Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!/ Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!/ Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,/ sempiternamente as mesmices convencionais! (…) Todos para a Central do meu rancor inebriante/ Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!/ Morte ao burguês de giolhos,/ cheirando religião e que não crê em Deus!/ Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!/ Ódio fundamento, sem perdão!” Neste episódio, e para nos desvirarmos um tanto dos itinerários e leituras onde já fomos escavando as nossas trincheiras, pedimos apoio a esse mestre de armas de longuíssimo alcance, sobretudo morteiros filosofantes. Victor Gonçalves é desses que vão para o espelho e em vez de gritarem três vezes Candyman, gritam Nitzsche, e passam os dias exaltados, assombrados, fervilhantes num debate sem fim. Diz-se uma espécie de “filósofo jornalista”, pois gosta dos dias, dessa bulha, de dar resposta, não levar tudo para sufocar em casa, e além do ensino de adolescentes, anda aí com os filósofos pela mão, como um bando de meninos diabólicos, a desassossegar os bairros e virar a lata contemporânea.

Friday Jun 07, 2024

O capitalismo serve-se de uma mão cheia de comprimidos de viagra na hora de falar de erotismo, e prefere discutir as preferências em termos de pornografia ou particularidades sobre a penetração do que se recriar em jogos de sedução. Havia aquele tipo com uma eficiência brutal nas saídas à noite e que se limitava a aproximar-se dos alvos e dizer-lhes “queres foder?” Vendo isto alguém lhe disse: Deves estar sempre a levar estalos… e ele assentiu, que não era infrequente, mas que era o preço que pagava de bom grado sendo que com esta abordagem não deixava de foder todas as noites. O capitalismo não vê a diferença entre ele e o Casanova. Melhor ainda seria Gengis Khan, de quem se diz que cerca de um sexto de todos os homens integram a sua descendência. Aí nem estava em questão obter prazer, mas tão-só submeter as populações conquistadas, inseminar as mulheres à força, esmagar a posteridade com o seu material genético. Também o capitalismo só pensa em reproduzir-se, submeter toda a vida, até ao limite da sua extinção. Este espírito ainda repugna a uns poucos, mas cada vez são menos aqueles que não aderem às comunidades de pregar com pregos, de competir e impor-se aos demais. Entre os burgueses, Cesariny só conseguia admirar uma das suas tantas espécies. "Penso que a questão é esta: a gente –  certa gente – sai para a rua,/ cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória/ e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!/ Contudo e já agora penso/ que os gatos são os únicos burgueses/ com quem ainda é possível pactuar –/ vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!/ Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…/ Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato/ mas de gato para cima – nem pensar nisso é bom!/ Propalam não sei que náusea, retira-se-me o estômago só de olhar para eles!/ São criaturas, é verdade, calcule-se,/ gente sensível e às vezes boa/ mas tão recomplicada, tão bielo cosida, tão ininteligível/ que já conseguem chorar, com certa sinceridade,/ lágrimas cem por cento hipócritas.” Hoje pede-se demasiado da política, mas o vazio é sobretudo de ordem cultural, do espírito, das ideias, e, por isso, também das nossas urgências e necessidades, paixões, desejo. Estamos consumidos por necessidades excitadas e produzidas artificialmente. “Posto isto, podemos começar a formar uma concepção de cultura, uma ideia que, antes de mais nada, é um protesto. Um protesto contra o insano constrangimento imposto à ideia de cultura, ao reduzi-la a uma espécie de panteão inconcebível e ao provocar assim uma idolatria em tudo idêntica ao culto das imagens nas religiões que relegam os seus deuses para panteões. Um protesto contra uma concepção de cultura distinta da vida, como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida, como se a verdadeira cultura não fosse um meio requintado de compreender e de exercer a vida” (Artaud). Diante deste cerco impiedoso, destas práticas ridículas, desta competição que dá cabo de todo o sentido da graça, da elegância de quem sempre preferiu escapar de regimes concentracionários, de bulhas intermináveis, esperava-se daqueles que vivem do tráfico das obras culturais um sinal de diferença, uma forma de demarcação. Pois como notou Vitor Silva Tavares, “se a montante e a jusante do fabrico és tu ‘o mercado’, como te fazem, então está na tua mão lixá-lo – ou, em mais fina terminologia sociológica – subvertê-lo. Escolhe e torna a escolher, encontra esconsos, busca luminescências (quase) clandestinas, contribui, pela inércia, para a cubicagem dos sarcófagos de invendidos, nega a lógica vampiresca dos conglomerados editoriais. Não embarques quando ouves ou lês que eles garantem empregos e salários e difundem a língua e a cultura e o comércio externo e o equilíbrio da balança de pagamentos e o aumento do produto interno bruto… deste embrutecimento programado. Mete na cabeça que a legião de accionistas do ‘sector’ não é de fiar.” Tudo isto serve de balanço para uma conversa em que falámos dos sinais da capitulação deste sector ao mercado, uma rendição eufórica que a cada ano é celebrada nessa liturgia sacrificial que é a Feira do Livro de Lisboa. Para nos acompanhar e impelir nesta reflexão e crítica da forma como o capital se vai espacializando, e subjugando as nossas cidades, “suprimindo as qualidades específicas inerentes aos lugares, os quais já só subsistem em estado de poeiras físicas, como vivências subjectivas e relativas, sem valor nem consistência” (Bruce Bégout), contámos neste episódio com os bons ofícios de Luís Mendes, geógrafo que se tem empenhado particularmente em procurar soluções para a crise da habitação e para a progressiva financeirização das cidades.

Friday May 31, 2024

Quando se fala de poesia são aqueles que desatam a brilhar e acham sempre que é com eles que, ao mesmo tempo, se fazem de desentendidos, que nunca sabem bem o que isso seja, até porque lhes convém poder pôr qualquer arrotito lírico nessa conta pela qual ninguém se responsabiliza nem há quem a pague, e lá vão levando fiado e gozando o prestígio dos que elevaram a canção a um modo de provocar um estremeção na realidade. Mas se até um figurão reputadíssimo como Vitor Aguiar e Silva percebeu como os poemas reiventam a linguagem verbal e como nessa reinvenção lêem e dão a ler de modo inédito o homem e o mundo e transformam o homem e o mundo, não deixa de ser estranho que depois os ditos poetas se mostrem sempre tão titubeantes. Dá a sensação que hoje despencam na poesia, como num palco de consolação, aqueles que se frustraram na sua carreira enquanto artistas pop. Estão fascinados por essa regularidade das formas de ruído espectacular, essa mecânica estridente que vive de repetições, cópias, frases sem grumos, reproduzíveis, que ficam no ouvido desses seres mastigados pelo quotidiano massacrante que se nos impõe. Hoje, o rouxinol tornou-se um intruso, uma espécie de imigrante ilegal no reino da canção. Como nota Pierre Alferi, as condições urbanas geraram distúrbios de tal ordem que o ruído no trânsito obriga os rouxinóis a cantarem tão alto que tecnicamente os seus cantos excedem os limites legais. Mas os poetas não, nunca. Só cantam se for conveniente e no volume que se considerar mais agradável. Já o rouxinol poderá causar verdadeira perturbação e obrigar os vizinhos a abaterem-lhe a árvore. São os rouxinóis, hoje, e não os poetas que correm mais risco de serem expulsos da cidade. O que nenhum poeta quer é ser acusado de perturbar a ordem, as consciências ou, em geral, o conforto dos seus contemporâneos. Se pudesse enchia estádios. Mas não podendo, canta por aí nos convívios entre aqueles que acham que a poesia enobrece os seus sentimentos. “Já quase nada surge sem mais nem menos” (Don DeLillo), tudo tem de ser encomendado, convidado, tocam-se as canções mais pedidas. O poeta mais parece uma jukebox, e não tendo êxitos no seu repertório, fica obrigado a fazer imitações daquilo que passa mais na rádio. Para os nossos dias, um tipo como o Camões, esse génio arruaceiro que fervia em pouca água, apesar do ambiente comemorativo nestes seus 500 anos, seria tido certamente como um ser grotesco, um bárbaro face à fraseologia mortuária que ocupou o lugar da língua portuguesa. Hoje seria necessário evadirmo-nos, com Camões e outros da mesma estirpe, esses seres que se agarravam à vida mais pela capacidade de evocar outras visões e mundos, que vão explorando através dessa espécie de arabescos acústicos tecidos à volta das suas experiências, e que compõem canções infinitamente mais convincente e ardorosas do qualquer desses simulacros com que nos divorciamos dos nossos sentidos. Nestes 500 anos, para apreciar a decomposição e o chavascal que se fez à volta da obra de Camões, pedimos a orientação de um dos nossos mais empenhados e audazes camonistas, Hélio Alves, alguém que se tem batido para revitalizar o estudo desta obra, notando que os supostos pedagogos continuam a ignorá-la, “enquanto repetem o mesmo refrão de sempre sobre a valente e mulherenga criatura”.  “A dificuldade em formar o pensamento abstracto nos jovens, isto é, a falta do que devia chamar-se uma escola, deve ter contribuído em muito para não se saber ler”, nota ele. “Seja como for, os poucos críticos ainda dignos desse nome não terão outro remédio, para a nossa saúde, senão voltar, seja por que abordagens e matizes forem, à poesia de Camões”. Este nosso guia frisa ainda como Portugal apostou desde sempre na sua excepcionalidade. “Na vida, na carreira, no génio.” O problema é que na hora de medir e sopesar tudo a tarefa parece ter-se tornado demasiado exigente para os leitores que vamos formando. “Quem louvará Camões que ele não seja?”, questionou Diogo Bernardes logo no primeiro verso da homenagem que lhe prestou… Hélio Alves tem procurado pelo menos que haja condições para que a homenagem não sirva apenas como um estratagema para enterrá-lo mais fundo na nossa ignorância.  

Friday May 24, 2024

Diante deste regime cultural dos que sempre se recomendam (a si mesmos e uns aos outros), dos que em todas as situações encontram forma de capturar-nos apenas para se mostrarem infinitamente virtuosos, desses que, assim, se servem da sua virtude para masturbar os seus vícios (Michaux), somos levados a pensar no que Flaubert respondia quando lhe perguntavam que espécie de glória ambicionava mais: “A de um desmoralizador.” É um problema de inspiração, das matérias e exemplos para os quais nos voltamos, procurando sempre o teor edificante nas nossas manifestações e comportamentos. Todos se querem subversivos, mas não se livram do ranço dos valores de sempre, e rejeitam tudo o que é mais baixo, tudo isso que, por assim ser, “não pode servir em hipótese alguma para macaquear uma autoridade qualquer”. Como refere Bataille, “a matéria baixa é exterior e estranha às aspirações ideais humanas e recusa-se a deixar-se reduzir às grandes máquinas ontológicas que resultam dessas aspirações”. Os elementos degenerados ainda são apenas tolerados e mantidos sob uma apertada vigilância ou condenados à inexpressão. Todas as ficções depravadas circulam como exemplo de um excesso que se vê aproveitado pelos cursos de catequese das artes, como enunciados a serem replicados em série de forma a derrotar qualquer efeito de choque. Hoje a hipocrisia é o preço que todo o vício se vê obrigado a pagar à virtude. Como nota Claudio Magris, as formas de profanação ostensiva, tão gratas a tantas expressões artísticas, revelam-se amiúde cheias de boas intenções, e os escritores que se tomam por iconoclastas celebram o eros frente à repressão, as posturas rebeldes frente ao autoritarismo dogmático, a revolta dos marginais frente aos tutores das hierarquias sociais, e tudo isto não passa de mais outra profissão de moralidade e de bons sentimentos. Quão raros são aqueles que verdadeiramente mostram um interesse sério pelas catástrofes, por essas depressões tumultuosas e crises de angústia. Falamos tanto do inferno, mas, na verdade, muito poucos são aqueles que realmente se atrevem a fazer mais do que molhar os pés nas suas águas. Bataille nutria o maior desprezo por este tipo de artistas, e não poucas vezes exprimiu o ódio diante de um mundo que, até em presença da morte, impunha a sua pata de funcionário”, reconhecendo nos seus contemporâneos “os seres mais degradantes que jamais existiram”. Hoje o conteúdo da vida em sociedade representa uma perda constante de si, uma degradação do desejo, esse pudor diante dos próprios sonhos. “Talvez um olhar desapiedado seja hoje mais necessário do que nunca, num momento em que se foram desmoronando uma a uma as ilusões das grandes filosofias da história, persuadidas como estavam de que as contradições da realidade permitiriam a sua superação e conduziriam a um progresso ulterior”, refere Magris. E acrescenta que o devir do mundo parece agora à mercê de uma caótica e imprevisível ebulição, indiferente aos grandes projectos e perspectivas. Devemos mergulhar de novo no abismo dos nossos próprios sonhos, recuperar essa condição que ali reside em estado de cativeiro, essas criaturas humilhadas, os condenados dessa outra raça que não nos permitimos mais encarnar, essas peles que escondemos no armário. À vida para a qual nos seduzem, com os seus confortos e luxos ordinários, é preferível esta dolorosa odisseia nas trevas, onde não há repouso, mas através da qual é possível escavar esses túneis e recuperar essa lucidez escabrosa e a fraternidade sórdida entre aqueles que precisaram de se dedicar ao crime e à maldade para chegarem a reconhecer os seus rostos no espelho. Neste episódio, e para nos acompanhar nesta descida e busca desse efeito de monstruosidade e plenitude transgressiva, buscámos a companhia de Pê Feijó, alguém que para falar de si começa pela vulnerabilidade, que encara esse gozo de trabalhar com os géneros como uma forma de ventriloquismo, o qual lhe permite identificar-se não com essas composições genéricas e acomodáveis, mas com o carácter insurrecional do desconhecido.

Friday May 17, 2024

Que pavor este de porventura não existirmos, não a ponto de isso significar um abalo na vida dos demais. Insistimos sem saber a favor do quê, sem ficar claro exactamente que resistência é essa que começa por degradar-nos ao adulterar os ecos daquilo que dissemos. Devolvem-nos reflexos mutilados, degradam todas as formas de vida ao serem acolhidas entre as mortíferas hipocrisias do campo cultural. Como refere Owen Sleater, "uma das maneiras de encobrir ou aniquilar uma forma é instituí-la. A metodologia de instituir corresponde a um cisma na forma, a uma separação entre o seu modo de ser e o seu modo de actuar. Assim, toda a instituição é uma Igreja menor, que se separa para se reificar segundo o seu objectivo de persistir para governar na eternidade. Apesar de sermos na maioria filhos do império cristão, isso não é uma fatalidade. A verdadeira fatalidade é a crença nesta percepção de que a vida deve ser regida por um princípio unificador capaz de trazer ordem, aí onde, no entanto, tudo transborda. Todos nós já tivemos a experiência de ver emergir as formas, e até os seus movimentos, quer se trate de um caso amoroso, de um tumulto ou de um bar clandestino. Ver a autonomia das formas não é ser contra a instituição, mas distanciar-se dela, fugir dela constantemente. Isto exige que abandonemos esta percepção truncada do sensível. Ouvir, sentir, ver e tocar a ‘melodia da vida’. A melodia da vida é uma autonomia da forma." Vivemos encarcerados numa realidade irrespirável, sem ligação entre uma coisa e a seguinte. Não parece haver a possibilidade de narração de outra coisa, e, se alguém o faz, logo fica perante o zelo desses pasmosos habitantes que, desde a sua indiferença, vão gerindo o desgaste, sufocando tudo entre os seus costumes, essa prosápia medíocre e hipertrofiada. A cultura tornou-se mesmo o vício e a pretensão de tudo quanto julga ser “gente” num país sem termos de comparação que possam equilibrar essa doce paranóia de grandezas engendradas a meias pelo tédio e pela falta de imaginação. Outrora, o tempo e a posteridade ainda entravam em linha de conta, persistia a possibilidade desse último recurso, e de que estes ainda se prestassem a fazer justiça, corrigindo o triunfo e as suas tabelas. “Mas o tempo já não é capaz dessas cortesias nem de redescobrir a mensagem para lá do meio. Hoje os meios são a mensagem, mudam e apagam a História. A indústria da cultura destruiu a posteridade; não haverá revisões dos triunfos presentes” (Claudio Magris). A hora de muitos dos tantos que se vêem por aí insistentemente ignorados nunca chegará deveras, e talvez só possam contar com o benefício de uma redescoberta frouxa e momentânea por parte de meia dúzia de apreciadores. É isto o que somos, traficantes de cintilâncias e do caos de singularidades incalculáveis no meio desse aparatoso festival que resulta da submissão miserável da época às “linhas imbecis das morais e das eficácias primárias”. Decididamente, tudo quanto é interessante se passa na sombra. Cada vez sabemos menos da verdadeira história dos homens. Somos seres atravessados por este desacerto e esta incerteza descoroçoante. Não temos notícias de quem somos. Talvez por isso já não faça sentido procurar desfiar esse fio de vozes, esse sentimento partilhado, esta repulsa diante da cretinização e abominação da vida. “Quando se é fraco, o que dá forças é conseguirmos despojar os homens que mais tememos de todo e qualquer prestígio que ainda tenhamos tendência em consentir-lhes”, escreve Céline. A nossa obrigação é restabelecer o tumulto, criar zonas onde a paixão possa ser expressa sem complexos, sem os subterfúgios da ironia, lugares onde a errância e o excesso não sejam penalizados, mas acolhidas. Neste episódio, neste desejo de estender uma conversa que já vai longa, de reanimar a sua deriva, convidámos Maria Etelvina Santos a juntar-se a nós. Alguém que, para além do longo convívio com Maria Gabriela Llansol, de que se tem ocupado como ensaísta, mas também trabalhando o espólio, transcrevendo e preparando a sua edição, se tem desdobrado para desencantar esses períodos de imersão num outro mundo, num outro tempo, alargando os veios de irradiação de formas de vida radiosas para que a posteridade possa um dia retomar o fio.

Friday May 10, 2024

O ruído assumiu uma preponderância de tal ordem que o seu ritmo se impõe como uma forma de coacção, uma moral que engole e, sem digerir nada, devolve tudo na forma de uma massa de detritos. Com todos esses juízos precipitados, tendenciosos, é raro darmos com um espírito lúcido, capaz de reservar uma relação de espanto e estranheza face ao mundo, repelindo a consciência comum. Quem se confronta realmente com a realidade e a julga pelos seus próprios meios, de acordo com a sua experiência e sensibilidade, acaba ilhado, vendo-se cercado de um imenso mar de ressaca, de toda essa civilização do cliché. Mesmo os artistas, até os escritores depressa se livram da sua diferença, deixam-se subornar. Se os lemos, se a vida deles nos sobe à boca, tem aquele gosto do vómito. Mais do que escrever grandes romances, poemas épicos, ensaios intermináveis e com vontade de abocanhar o mundo, seria necessário operar por meio de uma fantástica depuração, uma eliminação radical dos elementos degradados. “Vivemos num mundo onde há cada vez mais e mais informação, e cada vez menos e menos sentido”, nota Baudrillard. A maioria dos homens já nem dominam qualquer ofício, perderam até a capacidade de efabular, de contar histórias, de dominar a própria força e desejo, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical. Vemo-los revirar as bibliotecas em busca dessas partes íntimas dos mitos, procurando exumar pequenos detalhes, produzir ficções ingénuas e pífias formas monstruosas a partir de cadáveres que, na sua substância, permanecem intocados. Esta fórmula tornou-se um dos grandes desígnios de uma certa literatura que obtém o favor dos leitores, talvez porque lhes vende uma ideia de que o segredo que estamos a perseguir diria o suficiente. Há muito que se reconhece como a cotação da experiência baixou, abrindo caminho à desintegração da realidade, que, doravante, se adapta às imposturas que cada um carrega num esforço de adaptação a sociedades marcadas pela paranoia. Talvez por isso seja difícil encontrar aqueles que são capazes de converter a realidade que lhes é próxima, tão familiar, em algo que seja iluminador, e que possa escapar desse todo despropositado e que vai sendo salvo pela velocidade do naufrágio. Não deixa de ser curioso notar como nessas concisas fórmulas através das quais uma geração procurava passar à outra uma certa experiência, nos provérbios ou nos contos morais, tantas vezes o que exprimem parece um contrassenso, um desafio à lógica. Como se a autoridade que só chega com a idade o que nos conferisse fosse uma capacidade de estar apto a abandonar as nossas expectativas e ilusões de forma a acolher uma lição de vida. Há muito Benjamin questionava-se: “Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um anel de geração em geração? Um provérbio serve hoje para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode lidar com a juventude invocando a sua experiência?”. Vivemos desolados numa realidade que já não responde a qualquer desejo, a qualquer hipótese por nós formulada e, no entanto, são aqueles que acusam todo este regime em que as ratazanas e a paranóia se impõem aos nossos antigos sonhos e propósitos, são esses que encontram maior resistência. Nos nossos dias, o crítico inspira ódio, porque a sua consciência fere esse enredo indulgente que tantos tecem para si mesmos. “Parece um fantasma no meio dos viventes porque é o único a interrogar a sua noite. Nessa interrogação solitária, que resume a sua vida, dá aos outros a possibilidade de ver, mas ver verdadeiramente. Não lho perdoam” (Ernesto Sampaio). No meio deste regime que nos devolve o mundo em ruínas e submerso nos seus próprios detritos, é urgente escapar desta atmosfera opressiva. Como sinalizava Don DeLillo, a nossa cultura parece estar reduzida a este ditame: “E vai tudo para a lixeira. Produzimos quantidades fabulosas de lixo, depois reagimos ao lixo, não apenas tecnologicamente, mas nas nossas emoções e raciocínios. Deixamos que o lixo nos molde. Deixamos que ele controle os nossos pensamentos.” Neste episódio, procurámos a companhia de um ilhéu, um açoriano nascido em Lisboa, um tipo que tem feito de tudo como escritor, como jornalista literário ou crítico. Nuno Costa Santos já não rejeita mas antes gosta de aparelhar essas naus precárias, jangadas com ânsias de outros mares, nesse esforço de partir à descoberta de uma linguagem cujos elementos não se comportem como restos de naufrágio à superfície de um mar morto.

Friday May 03, 2024

Essa coisada da literatura, onde é que isso já vai? Era para ter sido um extravagante ensaio geral entre os escombros da realidade, mas acabou como mais um antro para o recital dessas cansadas passagens obrigatórias, e o que nos escondem são esses exaltantes devaneios provocatórios, tudo é feito de forma a soterrar os melhores exemplos de um heroísmo indigesto. Passamos mal, cada vez pior, enquanto vivemos de castigo na sórdida intriga dessas réplicas medíocres, desses serviços de enciclopédia e de arrumação precária de alguns nomes nos balanços e panorâmicas da literatura portuguesa, sempre por ocasião de alguma efeméride, que logo deve sustentar o peso dessa canga. Estamos de tal forma contaminados pela técnica retrospectiva, que só damos mesmos pelos acontecimentos que rimam com o que já se deu, com a reprodução quase nos mesmos termos, como se tudo o que escapasse aos quadros de historicização já definidos devesse ser descartado como implausível. Parece que só o que está a dar, como assinalou Armando Silva Carvalho, é abocanhar a História… “A história da igreja, a história dos terramotos, a história das colónias, a história dos descobridores. Assaltam-se as bibliotecas, com sofreguidão, à cata de segredos, cabalas, diatribes. Toda essa patine seduz as cabeças devolutas e, é claro, não compromete nada nem ninguém.” Pois assim vamos, submergidos em ficções requentando os traumas do costume, como se tudo o que já passou devesse ressurgir, só nos restando dialogar com esse fantasma inexorável. E da poesia a ideia que se faz não é melhor, e continuamos entregues às excelências de um lirismo de obrigação, incapazes de definir outras coordenadas, alguma relação marcial com a época que nos coube, num regime de ataque e de defesa inextricavelmente ligados à expressão do ser vivo. Assim, nos sacudia Cesariny, notando como, “para qualquer lado exterior a nós que olhemos entramos numa zona que mesmo entre os mais novos está contente de ser puríssimo decalque de um momento anterior, um pensamento instalado na repetição (esta julgada muito boa para os efeitos da difusão)”. A questão hoje e sempre ainda deve ser colocado no sentido de perceber se somos capazes de reconhecer um inimigo. Os escritores, e os poetas em particular, vivem por aí nuns amuos, muitos satisfeitos consigo próprios, exigindo a paz para se entregarem ao seu suave degredo. Entretanto, aquilo que se escreve já nem deseja ser lido, dá os pontos, reclama a derrota cada vez mais cedo, não ensaia nem propõe nada, e admite-se até que a literatura está a ceder o lugar ao terror, às notícias sobre o terror, aos gravadores e às câmaras de filmar, aos rádios, a esse zumbido das notícias de catástrofes, umas sucedendo-se às outras, produzindo a única narrativa a que as pessoas reconhecem alguma validade. Há não muito tempo, Don DeLillo ainda teve a audácia de sugerir que há um curioso elo de ligação entre escritores e terroristas. “No Ocidente convertemo-nos em famosas efígies, ao passo que os nossos livros vão perdendo capacidade de dar forma ou de influenciar as pessoas (…). Em tempos acreditei que era possível a um romancista modificar a vida interior da cultura. Esse território, hoje em dia, foi tomado pelos pistoleiros e os fazedores de bombas. Conseguem arremeter contra a consciência dos homens. Isso que os escritores faziam antigamente, antes de terem sido comprados.” Aí está a consciência em termos bastante claros de um esvaziamento do papel do escritor, e, em muitos casos, até de uma certa renúncia a assumir qualquer acção no desconcerto das coisas. Por estes dias, os escritores refugiam-se nessas recriações do seu antigo prestígio, que servem apenas para uso interno, sem nenhum reflexo sério sequer ao nível da balança comercial. Bastam-se com a encenação desses miseráveis concursos de talentos aprovados sem distinção, mas apenas com o louvor que baste à difusão dentro do regime do espectáculo. Para deixar à porta não só as velhas ilusões como essas coroas de louro e a caixa de esmolas da boa consciência, neste episódio procurámos alargar o recreio de distúrbios batendo à porta da Academia, e Joana Matos Frias acedeu a vir falar connosco desse quadro geral da literatura portuguesa, que há muito parece ter ido abaixo, restando apenas uma espécie de culto à luz de velas, entre esses leitores que não se contentam com uma literatura que se cinge à mera transcrição de um mundo já conhecido, mas persistem nesse processo de descoberta das posições avançadas que não se limitam aos territórios do já vistoriado.

Friday Apr 26, 2024

Emergência, crise, desastre, colapso, extinção, palavras, palavras, palavras, o que podem elas fazer ainda se a violência maior reside precisamente nesse encadeamento azucrinante, nesse modo de alimentar um frenesi de cenários catastróficos sobressaltando-nos, instrumentalizando a indignação, até nos entregarem à indiferença e ao cinismo, de tal modo que é isso o que hoje transparece em todas as coisas, à medida que elas perdem a sua imagem, o seu espelho, o seu reflexo, a sua sombra, cada vez mais distantes da sua substância, incapazes de oferecer alguma resistência a essa tradução e aceleração impiedosa, arrastando-nos com elas nesse movimento implacável de contracção e de inércia. Baudrillard põe a hipótese de estarmos sujeitos ao mesmo movimento de expansão do universo, tal como as galáxias, presos num movimento definitivo que nos afasta uns dos outros a uma velocidade prodigiosa. O cenário de desastre e a sua pressão constante faz estremecer a trama da realidade a um ponto em que as coisas já não coincidem consigo mesmas... Sentimo-nos desfigurados face aos nossos reflexos. Como vincava Macedonio Fernandez, “as coisas podem chegar a um estado de descontrole maior do que elas próprias, ou seja, a um grau de alteração em que a sua existência acaba por ter menos valor do que uma existência zero, à medida que o efeito de substituição gera uma distorção de tal ordem que nos revela a sua tentação maléfica”. Por todo o lado é a descrença que assume peso, que impõe o seu signo sobre os quadros que melhor representam a época. Todo o efeito ameaçador, toda a consciência do horror que nos espera parece alimentar mais ainda essa força de inércia, uma imensa indiferença. O maior receio, aquilo que mais nos perturba, é a sensação de vivermos existências desprovidas de qualquer significado, estando submetidos a um efeito de desagregação que nos torna seres abjectos apesar das nossas melhores intenções. Parece ser mais actual do que nunca essa indagação de Pedro Oom, “Que pode fazer um homem desesperado, quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?” O poeta desapareceu faz hoje meio século talvez por não ter reservado no seu organismo margem suficiente para uma retumbante alegria, absorvendo inteiramente essa Primavera magnífica que tomou conta das ruas, um poema demasiado intenso para que ele não embarcasse com todos os seus anjos e demónios, ele que, de tanto destilar o ódio que lhe merecia o reino cadaveroso, sucumbia assim de absoluta comoção. Ao que parece ainda por lá anda, escolheu essa Lisboa e o seu tão inebriante vislumbre de uma outra vida comp paraíso, e ficou ali com um riso esplendente à entrada do restaurante onde combinara almoçar com alguns dos seus companheiros de consciência e sufoco, Vitor Silva Tavares, António José Forte, Virgílio Martinho... E se ele se encantava, só eles sabiam como tinha visto tudo o que queria, tinha ouvido aquela rima que o abalroou da vida, para não ter de engolir nem uma dessas pingas de merda que vão amachucando a nobilíssima visão que uns tantos tinham buscado. Neste episódio procuramos encontrar um ritmo que soe a uma contagem decrescente, no sentido de descongelar a história, recuperar uma perspectiva política, e até uma esperança na nossa capacidade de afectar o tempo, provocar uma necessária mudança de rumo. Pode ser que as palavras que usamos para despertar não queiram fazer outra coisa senão romper com esta sensação de luto entre nós e as palavras, entre as palavras e o mundo. Assim, e ao longo da muralha que habitamos prosseguimos esses exercícios de entoação, como quem anda à caça espreitando nos interstícios entre si e o mundo em busca dessas palavras nocturnas, palavras gemidos, palavras que nos sobem ilegíveis à boca, palavras nunca escritas, palavras inapropriáveis por parte desses empórios da redução do sentido e do alcance, palavras capazes de flanquear este absurdo em que nos fazem chafurdar. Para isso, para reconhecer e reclamar a ameaça existencial que paira sobre todos nós como uma espécie de juízo avassalador, para confrontarmos o desastre climático e as suas múltiplas repercussões, pedimos ajuda a Leonor Canadas, membro do Climáximo, e alguém que tem investido todo o seu tempo a desmontar os novos fascismos que emergiram nas últimas décadas e que nos vão levar a esse ponto a partir do qual mesmo o fim do mundo seria uma forma de clemência, quando o quadro que se desenha para este século é um inferno de tais proporções que fariam Dante queimar a pena.

Friday Apr 19, 2024

Consideremos aquilo que se espera hoje do escritor face à vida literária que nos resta, como este está condenado a exibir-se como uma espécie de fantasma em nome de um prestígio ou até de uma função que caiu em desuso, como um defunto que aceita fazer esses papéis de figuração nas cerimónias fúnebres e encomendas das almas que compõem o quadro cultural. Em geral, todos os agentes promotores, incluindo os editores, assumem aquela postura muito compungida, e colaboram com o protocolo dessa infinita despedida, sempre assustados com qualquer coisa que modifique os seus hábitos, receando que um dia deixem de contar com eles para estas liturgias. Dado o imenso desprezo com que se olha hoje para a literatura, tendo esta sido reduzida a esse conteúdo processional, chamando a si essas actrizes que adoram representar o papel das viúvas inconsoláveis do espírito, há muito nos acomodámos a este registo piedoso, que não admite que aconteça algo de inesperado e que nos faça sentir que vai estar outra vez tudo em aberto, tudo ainda por dizer. A começar precisamente por essas coisas que de tão cultuadas há muito deixaram de ser levadas a sério. Foi precisamente o prestígio aquilo que deu cabo da literatura. Morreu dessas honrarias e desse chorume dessas que os foram envenenando para reclamarem os benefícios sociais e a pensão por viuvez. Houve um momento em que o escritor, ao sentir que a lepra do renome se lançava sobre ele e a sua obra, compreendeu que dificilmente se libertaria dessa dignidade imobilizadora, dessa sacralização sufocante, tornando-se uma instituição à medida que o regime o anexava, para poder ignorá-lo em boa consciência. Este processo coincidiu com o momento em que o poder percebeu que a melhor forma de industriar as consciências seria substituir a realidade pela ficção. Assim, como notava Ballard, se há cem anos, havia "uma distinção clara entre o mundo exterior do trabalho e da agricultura, do comércio e das relações sociais — que era real — e o mundo interior das suas mentes, devaneios e esperanças", hoje essa fronteira parece ter-se apagado, e a ficção e a realidade começaram a tornar-se indistinguíveis. A realidade que não se abatia face às crenças dos indivíduos, começou a ver-se distorcida, e o papel do escritor, que passava por inventar uma ficção que condensasse as várias experiências do mundo real, dramatizando-as de uma forma ficcional, passou a ser exercido sobretudo por propagandistas e publicitários. "As paisagens exteriores dos anos setenta são quase inteiramente fictícias, criadas pela publicidade, pelo consumismo de massas ... a política é gerida como publicidade", vinca Ballard, adiantando que isto levou a que o escritor ficasse desempregado, e as suas ficções foram-se tornando ilegíveis, uma vez que os leitores estavam agora acostumados a uma leitura bastante supérflua da própria realidade. Alguns, mais danados, ainda se reinventaram através de meios perigosos, como insultos, ventos que cercavam, sacudiam e esbofeteavam os seus leitores, aqueles resistentes que tinham a capacidade de enfrentar esses processos de denúncia e loucura. Hoje os grandes leitores são como loucos. E, como nos diz Gonçalo M. Tavares, a loucura é como uma pátria à parte, uma raça à parte... "Os loucos mexicanos falam fluentemente com os loucos russos, é tudo gente que se entende". Neste episódio, e no intuito de compreender o estado de decomposição actual do espaço literário, quisemos consultar este homem que dirige há muito esse gabinete de curiosidades, estudos avançados e investigações peculiares nesses bairros abandonados e velhos edifícios ou fábricas desactivadas onde alguns dizem ouvir ainda a imaginação a fazer das suas a altas horas. Em vez de nos vir com as tão comuns e estafadas rotinas desses leitores que se tomam por uma nobreza recolhidos nas setes quintas do espírito, a sua obra consegue ser instigante sobretudo nos momentos em que desenha e nos enreda em percursos de leitura bastante improváveis e audaciosos. Ele ainda é dos últimos que parece ter claro que "o estilo de um escritor não é o modo como ele penteia os cabelos enquanto escreve".

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