Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

Listen on:

  • Podbean App
  • Spotify

Episodes

5 days ago

O descarado elogio que hoje é feito das humanidades serve-se amiúde de oposições bastante patéticas face ao regime tecnológico, mas a verdade é que os clássicos tendem a ser dissolvidos em soluções ácidas até deles só restarem esses elementos ou citações mais célebres que podem ser instrumentalizados, como slogans, circulando hoje nas redes sociais como moeda de troca de uma sabedoria proverbial, cada vez mais distante do contexto e da tensão que lhes é própria, até ser possível utilizá-los para se dizer tudo e o seu contrário. Num exame implacável desse exercício de ir para as praias homéricas à cata da conquilha, o escritor Christian Salmon mostra-nos como, tantas dessas frases, desgarradas do seu contexto histórico e da obra de que foram extraídas, escapam inteiramente à intenção do autor, tornando-se signos permutáveis, máximas e até chavões, que engrossam o grande caudal de clichés em que se banha a nossa época. Publicado no mais recente número da revista Electra, Salmon recupera a célebre frase de Charles Péguy onde este nos fez notar que "Homero é novo esta manhã e talvez nada seja tão velho como o jornal de hoje". Para Salmon este regresso dos Antigos indicia uma tentativa de recuperar um quadro de referências num mundo onde esses pontos se estão a perder, e no qual todas as autoridades se acham desacreditadas, convocando-se Homero num esforço de satisfazer a nossa busca por um narrador fiável e incontestado. Nos nossos dias, e depois de Kasparov ter sido batido pelo Deep Blue, poderia recriar-se esse enfrentamento num território muito mais poroso e complexo, onde os padrões maquínicos até aqui estavam claramente em desvantagem. Mas, se fosse hoje encenada uma batalha opondo Homero ao Google, o problema não seria saber se o primeiro esmagaria o motor de pesquisa, mas antes, e não havendo métodos analíticos que pudessem decidir de forma objectiva quem ganhou ou perdeu, se não seria o público, ignorando as epopeias, a preferir a mistela que a Google confeccionasse seguindo ponto por ponto as suas preferências, e devolvendo-lhe assim uma espécie de auto-retrato adequadamente filtrado. A questão dos nossos dias não é saber se os clássicos mantêm o seu vigor face aos enredos costumizados para cada um de nós com base nas nossas preferências, mas simplesmente se nós não degradámos o nosso aparelho cognitivo ao ponto de os clássicos estarem a tornar-se demasiado incivilizados e desordeiros ou exigentes para o nosso gosto. O consumidor segue os seus caprichos até à alienação, e aquilo a que confere o valor "humano" assemelha-se cada vez mais a um reflexo distorcido pela máquina. As provas estão aí, e numa notícia que por estes dias circula nos nossos órgãos de informação, ficámos a saber que já foi realizado um estudo de uma universidade norte-americana que concluiu que os leitores estão convencidos de que, se lhes for dado a escolher, preferem a poesia escrita por humanos, mas que, se esta lhes for servida a par daquela gerada por Inteligência Artificial, a partir do momento em que a sua origem lhes seja ocultada, preferem o produto sintético, considerando-o “mais fácil de compreender”, e sendo levados a acreditar que isso significará que foi escrito por um humano e não por uma máquina. A inteligência que nasce do confronto com as dificuldades está a levar uma abada face a todos esses produtos que se reproduzem de acordo com padrões de consumo, e a deixar claro que a cultura de massas foi uma forma de nos deixar tenrinhos para o desbaste maquínico. Se nos esforçássemos por abandonar a perspectiva da eficácia, as projecções trimestrais, as expectativas de lucro e o regime utilitarista que guia as nossas escolhas, se seguíssemos uma matriz de análise histórica, como sugere Fredric Jameson, talvez nos déssemos conta de que a História que ainda somos capazes de imaginar a partir destas métricas é uma forma de agonia, e só conhece um movimento terminal. Se o futuro hoje é tão mais pobre do que foi no passado, é porque não o conseguimos representar de outra forma senão como uma repetição monótona do passado. A ideia consoladora de nos transferirmos para uma realidade onde sejamos imunes face aos perigos, transfere-nos depressa para quadros virtuais. Como assinalou António Guerreiro recentemente, essa tentação de estarmos ao abrigo das catástrofes responde a uma tendência paranóica e está constantemente a atravessar fronteiras que deviam ser intransponíveis. "É habitada pelo fantasma da protecção absoluta e da prevenção, tornando-se assim um obstáculo à liberdade, inclusivamente à liberdade de correr riscos." A humanidade poderia ser definida precisamente como essa espécie que corre riscos desnecessários, pois vive enfebrecida pela possibilidade de superar aquilo que já antes foi alcançado. Steiner aponta o milagre que se dá pelo simples facto das nossas gramáticas engendrarem continuamente proposições contrafactuais, 'e se...', e sobretudo tempos futuros, sendo isso o que deu à nossa espécie os seus meios de esperar e de ir muito para além da extinção da espécie. "Duramos, duramos criadoramente devido à nossa capacidade imperativa de dizer 'não' à realidade, de construir ficções de alteridade, de um 'outra coisa' sonhado, querido ou esperado que a nossa consciência possa habitar." Hoje, esta dimensão humana está em clara perda, e Baudrillard fala de um “hedonismo ligado”, em que o corpo não passa de um roteiro cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inúmeros ginásios e os consultórios de cirurgia plástica e que descrevem uma obsessão colectiva assexuada. Assim, vai caracterizando uma sociedade fóbica, que responde a esse imperativo de tudo proteger, tudo captar, tudo circunscrever… “Tudo recensear, tudo armazenar, tudo memorizar.” Ele adianta como ali tudo merece protecção, embalsamamento, restauração. “Tudo é objecto de um segundo nascimento, o eterno do simulacro." O problema é então como localizar a diferença radical, essa que faz renascer o espírito insubmisso e que, diante das dificuldades o torna cada vez mais engenhoso, mais hábil e desafiador... "Como ligar de novo a ignição ao sentido da História para que ela comece uma vez mais a transmitir sinais, por mais débeis que sejam, do tempo, esse que segue adiante, essa margem de alteridade, de mudança, de Utopia", questiona Jameson. É uma questão de privação, de divórcio das máquinas, reconhecendo que aquilo que estas nos oferecem como futuro vai no sentido da nossa substituição. O passo seguinte no quadro evolutivo em que estamos presentemente lançados, passa por fazer do humano apenas o elemento de ligação para esse "sucedâneo maquinal". Neste episódio, e para discutir as implicações e as ameaças que hoje se colocam ao sector editorial, esse que nos últimos séculos tem estado no eixo dos esforços de transmissão de um legado cultural de séculos, contámos com a experiência desse subtil operador que tem sido Guilherme Pires, nas suas funções enquanto organizador de jogo, editor e conselheiro, tradutor, revisor, e tapa-buracos em toda a linha, alguém que conhece de cor a planta do edifício, e trabalhou em todos os pisos, desde aqueles submersos e que estão escondidos dos leitores e do público em geral, até aos andares modelo e às operações de charme e todos os esquemas que tanto embevecem os patêgos.

Monday Nov 11, 2024


Registo do lançamento de "Enclave", de Maria Lis, no dia 9 de novembro, em Évora, com apresentação de António Guerreiro
 
Maria Lis foi à procura de objectos sem uso, remetidos aos dias passados, uma peneira, uma caixa de comprimidos, uma balança para cartas, um limpador de espingardas, algumas pedras, uma goteira e outras miudezas e entregou-os a várias crianças para lhes perguntar: e com estas coisas que já temos, também podemos fazer outro mundo?
Uma geografia de entrelinhas, de silêncios e de mãos-na-massa, as imagens de Ana Filipa Correia, os objectos à espera de ânimo e o texto escrito no contexto da residência artística da poeta Maria Lis, ENCLAVE, editado agora pela Língua Morta, poderão ser vistos, ouvidos e mexidos na Pó de Vir a Ser, como promessas de outro modo, no dia 9 de novembro, pelas 15h00. Será também ocasião para lançamento em Évora da edição de ENCLAVE.
Fotografias: Ana Filipa Correia
A residência artística da poeta Maria Lis integrou as actividades do programa bienal da Pó de Vir a Ser, “A Condição do Campo”. A Pó de Vir a Ser é uma estrutura financiada pelo Ministério da Cultura / Direcção Geral das Artes e tem o apoio do Município de Évora, Município de Montemor-o-Novo, Assimagra, Formas de Pedra. Integra a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea.

Friday Nov 01, 2024


A morte não é mistério nenhum, já o facto de os vivos hoje terem tornado a vida tão insípida que os espíritos do passado se recusam a renascer, isso sim deve angustiar-nos. Perdemos o direito às repetições capazes de produzir alguma harmonia a partir da textura do quotidiano. O próprio tempo parece ter visto a sua natureza mudar, e a duração deixou de ser sentida como no estado normal das coisas. Hoje somos existências em suspenso, e mesmo os eventos mais drásticos não chegam para nos transtornar verdadeiramente. Diante da catástrofe, empanturramo-nos. Paul Valéry, no breve ensaio publicado entre nós com o título "O Governo da Máquina", fala numa crise da Inteligência, uma crise de todas as faculdades do espírito mediano, e instiga-nos a investigarmos em que sentido a vida moderna, os maquinismos obrigatórios desta vida e os hábitos que nos impõe podem modificar, por um lado, a fisiologia do nosso espírito, todas as nossas percepções e, sobretudo, o que fazemos com as nossas percepções ou no que estas se tornam em nós. Ainda pior que o desespero, é o apagamento desses sinais de vida, dessas inversões súbitas, dos gestos que reviram o sentido da história em que vínhamos embalados e produzem o inesperado. Estamos gastos por usos e para fins em relação aos quais nem demos o nosso acordo nem fomos consultados. Limitámo-nos a permitir que o estado de coisas se nos impusesse. Valéry entende que, se o lazer aparente ainda existe, perdemos o lazer interior… “Perdemos esta paz essencial das profundezas do ser, esta ausência inestimável durante a qual os elementos mais delicados da vida se refrescam e se revigoram. Somos banhados pelo esquecimento total; lavamo-nos do passado, do futuro, da consciência clara e premente, da presença implícita e confusa das obrigações suspensas e das expectativas que espreitam.” Um dia destes deixaremos sequer de perguntar quanto ao que podemos fazer para mudar o rumo das coisas. O carácter de um homem diluir-se-á juntamente com o seu destino à medida que deixa de poder afectá-lo. Mas durante muito tempo houve um bom número de canalhas que não se eximiam, ao abandonarem qualquer esperança de transformar o mundo, de pelo menos deixarem um rastro de devastação nesses actos desesperados. “Fugir, sim, mas no momento da fuga empunhar uma arma” (Deleuze). Mas hoje a máquina começa a ser o verdadeiro actor do nosso tempo. Ela mergulhou os seus circuitos em nós e empurrou-nos para uma frequência em que qualquer dos nossos impulsos se vê seduzido e dominado, absorvido por ela. Continuamos a usar termos como resistência ou revolução, mas a iniciativa foi perdida para a máquina. É esta quem programa todos os aspectos das nossas vidas, estende o seu horizonte e articula todos os domínios através da sua eficácia esmagadora. A alma começa a parecer-se cada vez mais com um algoritmo. Perante o efeito de intoxicação pela pressa que Valéry diagnosticou nas nossas sociedades há um século, este poeta-filósofo notou como “das inteligências vivas, umas gastam-se a servir a máquina, outras a construí-la, outras ainda a planear ou a preparar uma mais potente; uma última categoria de espíritos gasta-se a tentar escapar ao domínio da máquina”. E acrescenta que “estas inteligência rebeldes sentem, com horror, que o todo completo e autónomo que era o espírito dos antigos é substituído por um qualquer daimon inferior que só pode colaborar, aglomerar-se, encontrar o seu sossego na dependência, a sua felicidade num sistema fechado que se fechará tanto mais sobre si mesmo quanto mais exactamente criado por nós e para nós”. Mas e podemos lutar ainda por alguma coisa? Para Valéry é preferível recuar e voltar a pensar. Ele entendia que não se trata de resolver estes problemas, porque talvez o grande vício tenha nascido desse abandono, desse pacto estabelecido com as máquinas e que não é substancialmente diferente dos terríveis compromissos que o sistema nervoso faz com os demónios subtis da classe das drogas. “Quanto mais a máquina nos parece útil, mas útil se torna; quanto mais útil se torna, mais nos tornamos incompletos, incapazes de nos privarmos dela.” Não estamos apenas a transformar-nos noutra coisa. Estamos a deixar de ser o que quer que tenhamos sido até aqui, ao ponto desses espectros já nem saberem como exercer alguma pressão sobre nós. O passado está a sentir o sinal perder-se, a tradução a tornar-se cada vez mais débil, como um morse que persistisse já sem ouvidos que o soubessem interpretar. Para falarmos sobre os limites e as dificuldades que a tarefa do tradutor comporta, sobre erosão desta e doutras profissões liberais, sobre a tão ameaçada classe ligada às actividades da inteligência ou do espírito, sobre as ocupações desses indivíduos indefinidos, e cuja acção tem muitas vezes um alcance incomensurável, pedimos a Ana Maria Pereirinha para partilhar connosco as anotações que foi fazendo no seu dossier de pautas, isto ao fim de décadas em que tem estado ligada aos vários momentos e dimensões da vida editorial, estando hoje dedicada à tradução de textos e obras literárias. Colhendo cacos e escolhos, comparando fragmentos, tentando alcançar uns palmos sobre aquilo que se adivinha, começou a ficar claro que tudo aquilo que ainda somos capazes de recordar nos dá uma medida do que já perdemos ou estamos prestes a perder.

Saturday Oct 26, 2024

Quando é que um político ou algum dos nossos banqueiros se indispõe de vez com a mentecapta ironia disto tudo e nos vem ler alguns dos poucos versos realmente espinhosos que Fernando Pessoa nos dirigiu? Quando é que um deles passa realmente ao ataque, e lança em tom ríspido aquele: "Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,/ Sem coragem para ser gente com violência e audácia,/ Com a alma como uma galinha presa por uma perna!" Mas quando é que, em vez desse ar compungido de quem vive os seus dias num perpétuo luto, e agora ergue a voz para fazer a evocação incandescente e delirada de um pobre autocarro, quando é que abandonamos esse "Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República extrema-unção-enxovalho da Desgraça..."? E quando é que se tem direito a uma exaltante "Cena do Ódio" e que não seja apenas um esbaforido desabafo, mas uma incitação contra essa caricatura a todos os títulos porca que pretendem fazer passar de todos nós, falando-se na passividade lusa, no gosto malsão da ordem? Quando é que alguém relembra que a haver uma réstia de patriotismo todo ele residirá no combate a essa ordem panúrgica, para que não sejamos continuamente destinados à impotência e às representações falsas que circulam em nosso nome? Talvez, como aventou Eduardo Lourenço, a nossa crise provenha de uma má leitura de nós mesmos e acaso de um excesso de complacência para com tudo quanto é dos outros. Mas pode bem servir-nos de disfarce essa brandura toda enquanto se engatilha algum tipo de metamorfose diabólica. Pois a alternativa tem sido esta coisa que temos vivido, e então mais vale que cada um tenha numa cábula aqueles versos do Almada: "Futrica-te espantalho engalanado,/ apeia-te das patas de barro,/ larga a espada de matar/ e põe o penacho no rabo!/ Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!/ Espuma-te no chumbo da tua Valentia!/ Agoniza-te Rilhafoles armado!/ Desuniversidatiza-te da doutourança chacina,/ da ciência da matança! (...) Despe-te da farda,/ desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu/ que ficas desempregado!/ Acouraça-te de senso,/ vomita de vez o morticínio,/ enche o pote de raciocínio,/ aprende a ler corações,/ que há muito mais que fazer/ do que fazer revoluções! (...) Põe de parte a guilhotina,/ dá férias ao garrote!/ Não dês língua aos teus canhões,/ nem ecos às pistolas,/ nem vozes às espingardas!/ – São coisas fora de moda!/ Põe-te a fazer uma bomba/ que seja uma bomba tamanha/ que tenha dez raios de Terra./ Põe-lhe dentro a Europa inteira,/ os dois pólos e as Américas,/ a Palestina, a Grécia, o mapa/ e, por favor, Portugal!/ Acaba de vez com este planeta,/ faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!/ (Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!/ e esta gente distraída em guerras!)" Estamos todos gastos pelo uso que nos damos, e, ainda pior, imensamente desmoralizados pelas coisas que nos saem da boca, pelos lugares onde damos por nós, pela companhia, desde logo a desses a quem, na falta de outra gente, chamamos convivas, parceiros, amigos, toda a espécie de canalhas cuja obra são as suas infindáveis justificações. Doentes daquilo que somos, vivemos com o pavor de qualquer outra coisa. Por estes dias, como sempre que ocorre algum acidente que sobressalta as nossas consciências imersas em fantasias cada vez mais vulgares, cada um mente a si mesmo sobre a sua estranheza em relação àquilo de que agora se indigna, procurando desde logo esquivar qualquer responsabilidade quanto ao desenrolar das coisas, que apenas se resolve quando tudo se esquece e se passa à coisa seguinte. "Se já vimos multidões coléricas fazer revoluções, nunca vimos massas indignadas fazer outra coisa que não protestar de forma impotente", como nota o Comité Invisível. E ainda que o reconheçamos, é esta a prescrição que circula e que é acatada quase sem excepções. E depois?... (Mas antes ainda é preciso olhar em volta e confirmar se há ainda alguém que faça essa pergunta.) Bem, depois a burguesia vinga-se ao passo que a pequena-burguesia, já enfadada com a sua indignação, retoma a sua farsa, dormindo para o mesmo lado que até ali. Tudo isto ainda é uma forma de consumo, de segurarmos o único horizonte que acicata e satisfaz os nossos apetites, mesmo que em troca de nos tornar prescindíveis, descartáveis, imemoráveis. Neste episódio, reunimo-nos uma vez mais nessa cripta escavada à unha pelo mais graduado dos nossos almirantes que vivem numa bulha constante com as tempestades em mar alto. Regressámos à Poesia Incompleta pedindo o balanço e os enjoos das sucessivas tripulações que se revezam entre turnos a horas absurdas e que caberiam bem entre estes versos de José Emilio Pacheco, que servem ao mesmo tempo para ilustrar a natureza deste navio que atraca na Lapa como a rir-se da envolvência: "O nosso barco encalhou tantas vezes/ que já não tememos ir ao fundo./ É-nos indiferente a palavra catástrofe./ Rimos de quem pressagia males maiores./ Navegantes fantasmas, prosseguimos/ rumo ao porto espectral que retrocede./ O ponto de partida já se esfumou./ Sabemos há muito que não há regresso.// E se ancorarmos no meio do nada/ seremos devorados pelo sargaço. / O único destino é continuarmos a navegar/ em paz e em calma rumo ao próximo naufrágio."

Friday Oct 18, 2024

Por uma vez, e contrariando o Bowie, podíamos deixar de ser heróis, ou, pelo menos, de representar a realidade de forma anã para nos fazer sobressair. Contudo, às vezes parece ser esta que se encolhe ou retira, que se esquiva das nossas representações. Neste consumo constante de lendas pessoais, de fanfarronadas e galhardias histriónicas, estamos a perder todo o tesão por esse ideal de vivermos embrulhados uns com outros. "O coração é uma arte difícil", assinalava algures José Amaro Dionísio, adiantando que, tirando essa proximidade conquistada a palmo, "tudo o resto é a crédito". Em tempos, no alfabeto que compôs para a nossa dor comum, ele vincava como "solidão é uma palavra obscena"... "É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo." Este medo vive por estes dias embriagado, numa exuberância ridícula, fazendo um espectáculo de si mesmo. É uma forma de disenteria, e se antes as pessoas estavam sempre a morrer disso, hoje cagam-se até morrer exibindo-o como podem, alguns maçando meio mundo, outros em publicações nas redes sociais. Mirando à volta, qualquer uma dessas manifestações exprimem um estado de dependência, e seria realmente muito extraordinário se dos milhares de emissões que concorrem entre si na esfera virtual resultasse uma harmonia perfeita. Seria espantoso se de tudo isso resultasse uma satisfação qualquer, em vez de ser um modo de cada um se individuar enquanto protagonista de uma telenovela pindérica, quando não se preparou para mais do que fazer trabalhos ocasionais como figurante. Mas continuamos nisto, e com todos estes heroísmos patéticos estamos a dar cabo numa só época do prestígio que a raça foi constituindo para si no cultivo dessas fabulosas injúrias contra nós mesmos. Valeria Luiselli, numa das páginas do seu "Deserto Sonoro", confessa que não tem um diário, que os seus diários são as coisas que sublinha nos livros de outros. "Jamais emprestaria um livro a quem quer que fosse depois de o ler. Sublinho demasiado, às vezes páginas inteiras, às vezes duplamente." Estamos necessitados de gente que viva as suas vidas como um imenso plágio, lendo em voz alta, até ganhar uma tal naturalidade que quem quer que viesse para um debate sem um bom argumento ensaiado ao espelho ou em frente ao gato, aos catos, horrizando a vizinhança, fosse apupado até desaparecer de cena. Por uma vez que deixássemos de ter de aturar esses improvisos tacanhos e simplórios, toda essa gaguez e pigarreio, todo esse visco dos lugares-comuns que andam por aí sempre requentados. Este ajustamento permanente a modas passageiras e aos significantes das redes sociais lembra o aviso de Hannah Arendt: "Os clichés, as frases feitas, a adesão a códigos estereotipados e convencionais de expressão e comportamento têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção que todos os acontecimentos e factos, pela simples razão de existirem, apresentam ao nosso pensamento." Estamos a apagar o mundo com esses solilóquios desgraçados, com essa exibição constante nesta feira de aberrações fastidiantes. Melhor seria dar expressão ao assombro expansivo de um leitor, montando um guião a partir dos materiais mais diversos, tudo mastigado, esse resplendor efémero das coisas que provocaram em nós uma rara emoção, cada frase revista mil vezes, boa parte delas memorizadas, transcritas para todo o lado. Num tempo em que o decoro deu lugar aos derrames e eflúvios mais desgastantes, a espontaneidade deve despontar de um trabalho minucioso, colossal. O elemento essencial que eleva um palco é a exigência de quem quer que esteja a assistir. Não existe teatro sem esse elemento cruel, essa possibilidade de se ser arrasado ao representar uma cena. Devíamos realmente fazer do mundo um palco, em vez desta odiosa sala de espera, este pardieiro onde permanecemos sentados enquanto o nosso rabo incha a caminho da meia-idade, e depois dessa outra onde já nem falamos de outra coisa. E todas estas zonas e regimes da cultura assentam no princípio da inércia. Luiselli diz-nos que também frequentou a universidade, ainda que por pouco tempo. Perdeu a paciência para os professores com a sua "linguagem alimentada a anfetaminas, críptica, rizomática e absolutamente cheia de si". Vivemos enredados entre a selvajaria e estas zonas onde a sofisticação intelectual significa sempre alguma forma de compromisso com vista a neutralizar toda a acção transformadora. Talvez se soubéssemos de cor as palavras que realmente gostaríamos de dizer, e a vida mais não fosse do que buscar a ocasião propícia a cada cena, talvez então não fosse tudo tão inócuo. Neste episódio, Mariana Pinho, entre as aulas de História numa escola no Monte da Caparica, as raves de música electrónica no meio de bosques com bruxaria de ordem química à mistura, e teses sobre a vida das plantas, as florestas e o diabo a sete, veio falar connosco sobre este tempo congelado em que vivemos, e os laços que ainda são possíveis em termos afectivos e solidários, modos de organização colectiva experimental que possam permitir-nos emergir dos destroços em que vivemos imersos.

Thursday Oct 10, 2024

Não se chega a uma versão contemporânea da pergunta "o que é um leitor" sem o medir, avaliando as suas escolhas, face à proliferação de livros que hoje se publicam. E isto porque, como notou Benjamin, "antes de as pessoas chegarem ao ponto de abrir um livro, já um tão denso turbilhão de letras mutáveis, coloridas, conflituosas caiu sobre os seus olhos, que as possibilidades de penetrar no silêncio arcaico do livro se tornaram escassas". Ele ainda adianta que "os enxames de gafanhotos da escrita que hoje encobrem o sol do suposto espírito aos habitantes das grandes cidades, irão tornar-se mais densos de ano para ano". Chegados a este ano algo mirífico e inimaginável, sobretudo pelos efeitos da redundância e ruído incessante que obrigam cada leitor a escavar um buraco tão fundo de tal modo que possa escapulir-se desta época, lendo como um escafandrista a umas boas léguas de profundidade, aquele sol está reduzido a um candeeiro intermitente. Por estes dias, o imaginário aloja-se entre o livro e esse candeeiro, e um bom leitor reconhece-se sobretudo por aquilo que logo rejeita, todos esses livros que apenas cheira e descarta. Numa das suas breves teses sobre a técnica do crítico, o ensaísta alemão diz-nos que "polémica significa arrasar um livro com base em poucas das suas frases". "Quanto menos se examinou o livro, melhor. Só quem é capaz de arrasar pode criticar." Logo a seguir eleva o tom de provocação, dizendo-nos que "a polémica autêntica ocupa-se de um livro com tanto carinho como um canibal prepara um bebé". Tinha teses maravilhosas este tipo. Tantos dos que fazem dele um solene exegeta, um tão escrupuloso e grave juiz da contemporaneidade, benzem-se diante de algumas das suas asserções que roçam a blasfémia para esse culto beato que cerca os livros. A ele pareceu-lhe útil relacionar os livros e as prostitutas, começando por notar que, desde logo, se aproximam por se poder fruir destes e daquelas levando-os para a cama. "Os livros e as prostitutas entretecem o tempo. Dominam tanto a noite como o dia e tanto o dia como a noite." Mais? Sim: "Os livros e as prostitutas não dão a entender que os minutos lhes são preciosos. Quando nos envolvemos com eles mais de perto é que notamos a pressa que têm. Vão contando o tempo à medida que nos embrenhamos neles." Quantos desses cursos literários, seja na universidade seja nas abordagens menos sistemáticas, nesse regime de catequese e formação para a caridade promovido pelos festivais, se lembrariam de admitir que a frequência do putedo (o outro, aquele mais prestimoso) poderá ser um trunfo para o judicioso embalo de um crítico literário? Benjamin não duvida de que "os livros e as prostitutas sempre tiveram um amor infeliz uns pelos outros". Só mais uma (e esta é fundamental): "Os livros e as prostitutas gostam de contar, com muito prazer e muitas mentiras, como se tornaram no que são. Na verdade, muitas vezes nem eles próprios reparam nisso. Anda-se anos a fio atrás de tudo 'por amor' e, um belo dia, eis na rua a solicitar clientes um corpus avantajado que sempre apenas pairara acima dela, 'por curiosidade científica'." Já sabemos que aliança daria o ponto de partida para um evento literário que realmente quisesse deixar de pautar-se pelo esquematismo enfastiante a que nos vão habituando os nossos programadores culturais. Se a vida não se detém, apesar dos esforços em sentido contrário, das pressões para prever e controlar tudo até aos mais ínfimos detalhes, aquele momento que mais nos cativa é quando esta se separa daquilo que habitualmente se lê, seguindo o seu curso. Num universo saturado de livros, onde tudo está escrito, ficamos com a sensação de que não nos resta outra coisa senão reler, ler de outro modo, ganhar ousadia e persistir nas suas derivas. Não podemos ter criadores exaltantes enquanto não aprendermos a ler de forma digressiva e selvagem. A liberdade no uso dos textos é um aspecto crucial para que o leitor deixe de se sentir submetido à intenção autoral, para que leia desfazendo-se da orientação pré-definida, ajudando assim a que a literatura não se confunda com as refeições pré-cozinhadas que ocupam secções cada vez mais vastas nos supermercados. O melhor leitor é o pior leitor, aquele que não se submete a nenhuma outra disciplina senão o seu próprio interesse, necessidade, apetites, urgências. Como registava Ricardo Piglia, encontraremos os grandes instigadores de uma retomada do ânimo das vanguardas nesses leitores que traçam os seus percursos gozando de "uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossível". No entender deste escritor argentino, a maior invenção de Borges terá sido esse leitor que goza uma autonomia absoluta, e que manifesta a sua capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no seu por: "A ficção como uma teoria da leitura." Neste episódio, e para levarmos mais longe as nossas investigações sobre o papel da crítica literária na recomposição de um espaço literário, de modo a que a obra de arte possa uma vez mais funcionar como uma "central de energia", inspirando e desafiando a vida, neste episódio contámos com a participação de Carlos Maria Bobone, alfarrabista, escritor e crítico literário que tem demonstrado uma sagacidade e uma erudição invulgaríssimas e que fazem dele um dos elementos decisivos dessa caça às avessas de tudo aquilo que são as tendências e compulsões da época.

Friday Oct 04, 2024


Alguém faz algo que ninguém compreende, um acto que excede a experiência de todos. Esse acto não dura nada, mas tem a qualidade pura da vida, e, não sendo narrativo, é a única coisa que faz sentido narrar. Hoje abundam os narradores, aranhas senis balouçando nas suas teias de tinta, contando uma e outra vez as mesmas histórias. Falam muito das coisas que fizeram, relatam-nos tudo o que os motiva e aquilo que ainda esperam fazer. Nem precisam de se escutar uns aos outros, o seu número apenas exprime uma situação sem saída, uma multiplicação que impõe essa fábrica de relatos na qual vivemos encerrados como num cárcere. O que importa é narrar, mas pouco importa se a história é capaz de instruir ou animar alguém ao ponto de orientar a sua acção. A crise da literatura portuguesa coincide com o ânimo desses funcionários da reprodução do mesmo, que constróem frívolos enredos nos quais não pesam nem conhecimento nem a ânsia exploratória, e é por serem tão crentes na sobrevivência do seu talento que recusam todos os elementos efémeros, sendo incapazes de se actualizarem catando aqueles elementos radiantes de entre a malha de detritos. "O homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos — divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes —, entretanto nenhum deles se tornou experiência”, diz-nos Agamben. "Ou seja, o ser humano está repleto de eventos ao longo do dia, mas nenhum se torna experiência. É como se a banalidade da vida virtual não fosse o suficiente para que os dias contassem como bem vividos…" Todos falam de obsessões, mas ninguém é capaz de mergulhar nelas e extrair alguma visão minimamente inspiradora. Estamos a desaparecer engolidos pelo olhar destas pessoas cansadas das infinitas complicações da vida quotidiana, "e para as quais a finalidade da vida se descortina apenas como ponto de fuga longínquo numa infindável perspectiva de meios", adianta Benjamin, esse ensaísta alemão que tem servido de esteio a todo o tipo de derivas. Mas para lá desse plano geral em que todos participam, dessas ilusões para as quais todos contribuem, há que sinalizar como sempre foi suficiente um acontecimento inesperado para nos alterar drasticamente a vida. Infelizmente, na vida da maioria dos jovens a única metamorfose que vemos ocorrer leva-nos a espiá-los apenas até ao momento em que aquela vítima, cansada da sua própria agitação moral, cede e dá os primeiros passos de verdugo. Talvez a ninguém apeteça falar por sentir que mais tarde ou mais cedo acabará por se revelar perante si mesmo, desfazendo a sua própria fantasia. Com a mesma inclinação de Unamuno para nos sentirmos intrigados perante os gestos e as manifestações da nossa juventude intelectual, podemos assinalar que talvez não haja outra forma de estar empenhado no seu tempo que não passe por estar investido nos sinais do assalto que deles esperamos ao ideal. E se tantos dão sinais de uma postura desdenhosa diante daqueles que podem ou não reclamar o vigor de uma acção regenaradora, uma outra atitude era a do grande autor espanhol, que preferia exprimir com uma certa dureza o seu afecto, chegando a demonstrar um gosto por chicotear aqueles de quem esperava algo de transformador. "Para os irredimíveis, para os que se limitam a arrastar-se por uma vida sombria ou uma morte ainda mais sombria, para esses há apenas a apóstrofe florentina: não falemos deles, olhemos e passemos adiante." Unamuno dedicou várias das suas intervenções a confrontar a tendência crescente dos jovens para se exaltarem de uma forma ou de outra, fosse directamente fosse através de elogios mútuos, manifestando um orgulho insuportável sem muitas vezes terem a menor consciência da tradição que procuravam abalar. "Há muito orgulho fingido nos nossos jovens, tal como há pura ficção na hediondez daquele animalzinho inocente a que os naturalistas chamam Moloch horridus, o inofensivo lagarto da Austrália, que, quando é molestado, assume o aspecto de um animal assustador e nocivo, eriçando de medo não sei que espécie de cauda ou gola sobre o pescoço para se fazer maior do que é." O que a seguir nos diz sobre a juventude espanhola do seu tempo pode ser transposto sem grande esforço de adaptação para retratar a nossa juventude intelectual: "A maior parte dos males de que sofre a nossa juventude tem origem na precariedade da nossa vida cultural. A sua fantasia engana-os mais do que nunca, mostrando-lhes o pão sob a forma de glória. Já o disse muitas vezes, e repito-o, e não será a última vez: entre nós, a ganância afoga a ambição. Somos um povo de mendigos arrogantes, que diz 'Deus lhe pague!' a quem nos dá esmola e 'Que pulha' a quem não dá. Um jovem chega a Madrid à procura de uma boa posição, e logo se lança em busca de um tacho, para ter uma vida o mais cómoda possível. E os que se julgam mais independentes são geralmente os que se lançam com maior afinco neste esforço de se fazerem funcionários de uma reputada instituição qualquer. O mais triste nisto tudo é que os jovens estão dispersos e não compreendem que, se ao menos se se unissem, deixariam de ter de obter cunhas e favores, e que marchando numa falange compacta isso lhes daria muito mais força." Na própria literatura vingou o regime da cunha, demasiados pastiches, arranjinhos, esquemas, demasiadas paródias insossas... Antes seria de preferir plágios directos, roubos descarados, desde que se guiassem por essas paixões que são capazes de nos guiar pela vida fora. Falando dos seus velhos amigos, o alter ego de Ricardo Piglia notava que à medida que foram envelhecendo manifestavam a aspiração de se transformarem naquilo que antes odiavam, e que tudo o que antes lhes gerava repulsa agora contava com a sua admiração... "Já que não podemos mudar nada, pensam, mudemos de opinião... E com isso vemos bibliotecas inteiras serem enterradas, e, nos pátios, pilhas de livros incineradas ou vendidas a pataco, mas falta ainda notar que, por mais difícil que resulte para alguns desfazerem-se do conteúdo das suas estantes, a traição mais perfeita está no modo como estes passam a ser lidos, com uma espécie de nostalgia piedosa, como quem se enternece com a sua juventude ao mesmo tempo que deplora as paixões que a animavam. Esses velhos amigos, "leitores dogmáticos, literais, dizem agora coisas distintas com a mesma sabedoria pretensiosa de antes". Antes tinham ao menos a desculpa de acreditarem em si mesmos, ao passo que agora acreditam apenas nos seus álibis e desculpas. Neste episódio, a Maria Brás Ferreira aceitou o convite sem fazer qualquer fita, sem negociar os termos, simplesmente deixou-se levar, e até pôs o telemóvel em modo avião, cortando qualquer sinal de geolocalização. Mantivemo-la refém durante cinco horas. E ao contrário do largarto australiano, dispensou qualquer cauda ou gola e deixou claro que estava disponível para ir dançar descalça no coreto, fosse este nalguma praça da nossa província fosse no coração das trevas.

Friday Sep 27, 2024

Falar-se da vida por estes dias é como falar da corda na casa de um enforcado. Onde é que isso nos pode levar? A frase é do Vaneigem, mas cintilou mais numa das primeiras críticas sobre os Joy Division, alguém que se soube muito cedo condenado ao dar com aquele som de ressaca de anfetaminas de uma cultura que teve o pressentimento de que a vida, na sua totalidade, ficara suspensa numa negatividade que a corrói e a define formalmente. "O mundo e o homem, enquanto representação, cheiram mal como carniça e já não há nenhum deus por perto para transformar os cemitérios em canteiros de lírios", continua Vaneigem. Continuamos pelos mesmos lugares, arrastando alguma melodia ou uns versos como senha para outro mundo. Mas "desde que se perdeu a chave da vontade de viver, deambulamos pelos corredores de um mausoléu sem fim. O diálogo do acaso e o lance de dados já não bastam para justificar a nossa lassidão; aqueles que ainda aceitam viver num cansaço bem mobilado imaginam-se a si próprios como tendo uma existência indolente, sem notar em cada um dos seus gestos quotidianos uma negação viva do seu desespero, uma negação que deveria antes fazê-los desesperar apenas pela pobreza da sua imaginação". Alguns julgam que nos seus apontamentos trazem algum deus desmembrado e que um dia irão ser capazes de lhe recompor os fragmentos, mas outros habituaram-se ao jogo das palavras, a mudar de lados, a gozar a variação... "Espero que os meus auditores compreendam que não sou um erudito nem um filósofo, mas, sim, um longo diálogo", vincava António Maria Lisboa. Depois daquelas pretensões básicas dos jovens idiotas que sonharam apresentar-se a concurso, carregar alguma fita, ser celebrados como misses, e depois de chegarmos à conclusão de que a matéria se acabou, de que não vale a pena exigir mais nenhuma extensão, resta a sensação de se ter o hálito contaminado de fantasmas, de que devemos abrir o espaço entre as zonas ínfimas e desatendidas. Tem-se a ocupação de uma frase para habituar o juízo a expandir a pulsação, criar um remanso de lentura num tempo obcecado com a velocidade. A vantagem do verso é que este se inclina à entoação de tal modo que nos recorda sempre que esta foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda-nos que foi um canto. Foi esse bando de homens misturados na profunda consciência homérica e que insistem que "os deuses tecem as desventuras aos homens para que as gerações vindouras tenham alguma coisa que cantar". E esse canto traduzia a própria fibra da experiência, esta valentia dos que não se importam demasiado com a canalhice da vida, uma vez que se reconhecem feitos para outra medida, outro alcance, outra entoação... Fomos feitos para a memória, para a poesia, ou, em alternativa, para o esquecimento. Se ainda persiste na leitura que se faz de forma solitária, silenciosa, alguma vertigem, essa está no fazer acompanhar-se dessas outras vozes que nos emergem nos lábios, as variações que fazem desse foco uma via para a insubordinação, para uma transformação do mundo. Hoje, a nossa própria natureza torna-se-nos estranha, como se desgostada diante de todo este retraimento, dessa incapacidade "de focar o nosso próprio presente, como se nos tivéssemos tornado incapazes de obter representações estéticas da nossa própria experiência actual", vinca Fredric Jameson, empenhadíssimo e exaltante crítico literário que desapareceu há dias e que nunca se cansou de assinalar como o capitalismo de consumo estava a programar "uma sociedade incapaz de lidar com o tempo e a história". Outro que tocou com a língua o céu da boca e se foi daqui há umas horas, Armando Freitas Filho, poeta que vencia a gaguez apercebendo-se do lucro que nasce com cada dificuldade e que foi passando a limpo toda a desteridade de uma fala mil vezes composta na cabeça antes de se atirar ao mundo, ter-se-á dado conta de que dizer, falar, cantar, ao contrário do que a maioria pensa, não é um modo de expelir algo, mas é sobretudo uma forma de ingestão. Fazemos sons para descobrir os vocábulos que possam fazer o que a saxifraga faz à pedra. É um modo de encantar o mundo e decompô-lo em porções digeríveis. Mesmo o corpo é só uma colher para trazê-lo à boca. E este poeta brasileiro ocupava-se dessas comunicações... "assim, numa transmissão de/ sustos e rangidos,/ veia e voz, ao vivo, sob tanto/ sangue: pantera escarlate/ que passa e pisa// e se espatifa nesse chão:/ pata de lacre,/ grito, pingo/ sobre o alvo/ tão tátil da minha carne,/ nos panos// repentinos do meu espanto,/ nas janelas/ onde me debruço sucessivo/ e vário, sequência de mim,/ em fotonovelas// me desdobro — quadro por quadro,/ nos desenhos/ de dentro do que sou e projeto,/ aos poucos — plano e pausa —/ para fora// com a vida que me veste/ pelo avesso:/ — filmes de sêmen onde publico/ figuras de suor e celulóide,/ numa lâmina// de velocidade e de lembrança,/ em fotogramas/ de esperas e procuras — falha,/ folha de slides-células, sopro/ e pulso,// página de pele em que escrevo/ o uso,/ a articulada letra do meu gesto,/ o rascunho de unhas & rasuras/ feito à unha// nas nuas marcas/ do meu corpo/ no espaço/ e nos lençóis da claridade,/ monograma, silhueta, cadência,/ e a fala// que se imprime nesta fita,/ neste sulco:/ — a linguagem como um fim,/ — a linguagem por um fio,/ e a morte em morse." Fica aqui assim esta frágil lembrança de um irmão que Carlos de Oliveira deixou do outro lado do Atlântico quando se mudou. Quanto a nós, depois de um hiato que se estendeu mais do que queríamos, estamos de volta ao diálogo a três, e pudemos contar desta vez com a orientação de Joana Lima, que escreveu uma das raras monografias dedicadas a António Maria Lisboa ("Eterno Amoroso", Edições Colibri), mas que nos ofereceu sobretudo um pacto de leitura e descodificação cúmplice e encantada da sua tão exígua quanto fulgurante obra. Pedimos-lhe algumas pistas para reiniciar o tal projecto de sucessão.

Friday Sep 20, 2024


Em geral, as notícias que nos chegam da realidade lêem-se como episódios de uma qualquer ficção descontrolada, e depois de nos provocarem alguma indisposição, levam cada um a subscrever e afundar-se nesses canais de inanidades. As pessoas já nem se aferram a um resquício de esperança, simplesmente escavam as suas vidas como buracos, submergem-se nos seus delírios e compulsões. Perdemos o direito à acção, mesmo na sua forma desesperada. As nossas bibliotecas vão florescendo em torno de ruínas, prestando testemunho das muitas realidades que desapareceram para sempre, e deixando em nós a sensação de que, em breve, a realidade em si mesma poderá desaparecer. Nas livrarias, ao lado dos relatos mais pessimistas temos esses mastigadores de palavras brandas e as suas ficções edulcoradas ou as autobiografias soluçantes e complacentes. Não vivemos sujeitos apenas a uma crise da imaginação, mas a uma fé negativa, a programas que dinamitam o infinito, as forças daquilo que deveria empurrar-nos para outro tempo. Prescindimos desse saber essencial que nos lembrava que somos habitantes de um mundo rigoroso, e que está inscrito em tudo uma ordem. Hoje tudo o que emerge tem de forçar o caminho, tudo o que nasce, nasce de imediato para a guerra, toda a esperança chega-nos aos ouvidos como um cântico de morte. No discurso daqueles que são sensíveis às novas causas, cada uma das suas palavras surge como um milagre de sobrevivência, como se fosse vegetação nascida do betão. Nas raízes da poesia, como nos lembra Borges, “está a épica e a épica é o género poético primordial, narrativo”. “Na épica está o tempo, na épica existe um antes, um enquanto e um depois”, adianta o majestoso fabulista argentino. Mas o homem que se devotava à imortalidade transmitida pelo canto, da boca de uma geração ao ouvido da seguinte, deixou-se degradar e submeter ao ciclo constante do consumo e à neurose patrocinada pelos efeitos publicitários, que gerou “uma segunda natureza do homem que o liga, libidinal e agressivamente, à forma da mercadoria”, diz-nos Marcuse. “A necessidade de possuir, consumir, manusear e renovar constantemente bugigangas engenhosas, dispositivos, instrumentos, mecanismos, oferecidos e impostos às pessoas para que usem esses produtos mesmo com risco da sua própria destruição, tornou-se numa necessidade ‘biológica’.” Antes, um sinal do espanto nos homens era a forma como resistiam à literalidade, a alimentar cada apetite mal este se lhes impusesse, havia um sentido de que o gosto se educava, e que em lugar de um fruto qualquer, havia a possibilidade de afinar a fome e alcançar aqueles frutos amadurecidos ao longo de milénios, com um sabor enriquecido por migrações e regressos. Era outra coisa aquilo que buscávamos, e ainda persistem uns poucos por aí, que resistem a abdicar do tempo que se rege segundo o ritmo e a disponibilidade humana, alguns que se mostram capazes ainda de colher e remontar outras épocas, “esvaziar uma música como um saco (…) ordenhar um vinhedo como uma vaca/ desarvorar vacas como veleiros/ pentear um veleiro como um cometa/ desembarcar cometas como turistas/ enfeitiçar turistas como serpentes (…) depenar uma bandeira como um galo/ apagar um galo como um incêndio/ vogar em incêndios como em oceanos/ ceifar oceanos como searas/ repicar searas como sinos/ esquartejar sinos como cordeiros (…) tripular crepúsculos como navios/ descalçar um navio como um rei/ pendurar reis como auroras/ crucificar auroras como profetas” (Huidobro)… Não faz muito tempo, os homens ainda falavam entre eles uma linguagem de incêndios, tinham um vigor que se alimentava na natureza de forma a transcendê-la. Hoje, somos incapazes de colher uvas nos espinheiros ou figos nos cardos. Mesmo a literatura deixou de se exercer em flagrante delito. A velocidade substitui o tempo enquanto ordem ou efeito que impedia tudo de suceder em simultâneo e, desse modo, encadear algum tipo de nexo narrativo. Somos projectados na inconsciência pelo ruído de todos esses “acontecimentos que não têm o seu próprio lugar no tempo, os acontecimentos que chegaram tarde demais, quando todo o tempo já foi distribuído, dividido, desmontado, e que ficaram em suspenso, não alinhados, flutuando no ar, sem lar, errantes” (Bruno Schulz). Hoje a própria espécie humana perdeu a ligação com a realidade, e deriva em suspenso, impondo as suas ilusões como uma doença que procura paralisar todos os ciclos.

Thursday Sep 12, 2024


Ao que parece a maior ambição do português é deixar de o ser. Ele viaja para ir descobrir a sua verdadeira nacionalidade, e adora cumular esses traços admiráveis dos povos como ele os fantasia e reconhecer-se aqui e ali, como quem recolhe diferentes opções num buffet. Portugal é o lugar onde o seu exílio se cumpre, e o país serve apenas para tornar ainda mais pronunciado o contraste, para engrandecê-lo. O herói português tem de ter pelo menos uma costela estrangeira, e fala por referência a este sítio como o lugar onde a aventura do seu sangue encalhou. Se o brasileiro é um feriado, como notou Nelson Rodrigues, por cá o nosso reaça de estimação garante que temos a praia como nossa mitologia. A copiar o estilo MECDonald, o Mexia diz que pouco importa onde fazemos praia, que esse verbo, “fazer”, diz tudo, e faz da praia uma actividade, algo que permite pôr um modo da acção nos momentos em que não se está a fazer puto. É um pouco a condição de todos aqueles que mais fazem por cá, ou seja, o aparecer em público a dizer e fazer o que os outros fazem em privado, isto basta para se elevarem a figuras de relevo, uns autênticos mitos nacionais. É o caso dele, e daqueles amigos que ele nas crónicas insiste que tem, mas só naquelas em que não nos vem falar de traições e intrigalhadas a que ele vai aludindo sem nunca explicitar, sempre que, para vir mandar recados, gosta de se travestir de grande parabolista. Ele garante que a praia não é apenas uma estância, uma experiência, uma temporada, que é também uma memória que nos define, e que ele e os amigos todos falam longamente das praias que frequentam ou frequentaram, as praias da infância e depois aquelas que servem para gastar alguma crónica de verão a vir-nos com os seus hábitos e a sua etiqueta balnear. Felizmente, por este ano já nos livrámos, não só dessas zonas mitológicas, como dessas feitorias. Setembro veio com maus modos, antecipou o frio e deu um encontrão aos nossos capitães da areia. Mas esta ideia de não se fazer nenhum, não se transformar nem introduzir nada de novo tem provado ser uma carreira extraordinária e um regime de cumplicidades fabulosas para aqueles que alargaram a tantos outros campos da nossa vida pública este modelo de laborioso fare niente. Veja-se o humor português que desenvolveu recentemente esta vertente tão proveitosa de copiar tudo tal como está e vir desenhar um bigodinho em horário nobre diante de uma plateia que em vez de marchar está para ali na galhofa, a assistir a uma montagem de excertos da realidade como ela é apercebida pelo olho do cu das nossas estações televisivas. O país já nem se reconhece a não ser que esteja a dar na televisão, e não se ri sem ter um maestro para fazer esses recortes e dar os sinais com a batuta: agora todos. E eles riem-se. Do quê? Do país, claro. Com o qual eles não têm nada a ver, pois no fundo são estrangeiros. O cinismo e a hipocrisia consumiram todas as expressões de reflexão, e a cultura portuguesa apenas se deixa enquadrar num regime anedótico. Enquanto isso, a educação moral e religiosa concebe o seu inferninho mediático e distribui a vergonha, a culpa e, por fim, a redenção, e boa parte dos nossos humoristas não passam de padrecas. A chave burocrática na base deste enredo é a capacidade de se lidar com a chatice, as tristuras e a miséria nacional revertendo-as em motivos de chacota… contra os portugueses, mas nunca contra si mesmo. Este é o grande subterfúgio, a única forma de funcionar eficazmente num ambiente que exclui tudo o que seja vital e humano. De respirar, por assim dizer, sem ar. Esse tédio que noutras partes corrói as pessoas na sua relação com o quotidiano, por cá transforma-se numa estratégia de clivagem e num álibi, e ainda numa ocupação desdenhosa. É uma receita de escabeche para consumir os complexos e falhas de carácter que se imputa sempre aos demais. Assim, e servindo-nos da pista fornecida por Foster Wallace, a chave para criar esta desafeição passa por esta capacidade, inata ou adquirida, de encontrar o outro lado da miséria, da inércia, da ninharia, da mesquinhez, da repetição, da complexidade sem sentido. De ser, em resumo, imune à nossa condição comum. Mas esta forma de imunidade acaba por revestir toda uma formação para a indiferença, e podemos sempre contar com os nossos palhaços cínicos para presidirem em horário nobre à grande homilia em que, em vez de uma hóstia, cada um cospe na pia onde alguma representação nossa é posta a arder. Esta capacidade de se anestesiar face à realidade que nos é comum não seria possível sem um quadro mediático que se especializou em alimentar esses complexos e a ideia de que o riso alarve é o melhor remédio. O limbo foi abolido pelo Vaticano, e uma vez que estava por aí, num desses caixotes dos saldos metafísicos, foi comprado por uns patacos e instalado por aqui enquanto programa de entretenimento e de hemodiálise. Assim, por efeito desse anedotário, vamo-nos apoucando e deixando que esse desdém pelo próximo seja o que nos define, vendo qualquer instinto ou impulso de rebelião ser domesticado e suavizado no trato social de acordo com a etiqueta em vigor.
 

© 2024 Enterrados no Jardim

Podcast Powered By Podbean

Version: 20240731