Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

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Episodes

Monday Jul 31, 2023

A vida não é aqui e só raramente nos visita, sendo este mais outro cenário que serve à encenação desses comoventes desenlaces de um mundo que vive de falsas esperanças, ficções hipócritas, dessas faustosas imposturas que, "com uma perversidade certeira, permitem ao sistema de poder do nosso tempo tirar a potência e autoridade a todas as formas que o desafiam, contestam ou lhe criam alternativas reais e ameaçadoras, conseguindo absorvê-las, acomodar, domesticar e falsificá-las, apropriando-se delas, mercantilizando-as, tornando-as instrumentos que prolongam e corroboram o poder que parecem contestar" (Alfonso Berardinelli). Um exemplo: as Jornadas Mundiais da Juventude, golpe que por estes dias devolve às ruas da capital aquele perfume de pureza, bondade, oferecendo uma janela para os nostálgicos das marchas da Mocidade Portuguesa. Nisto, e sem grande discussão, a cidade rende-se, prostitui-se, deixa-se invadir por essa operação de naftalina. Desta vez, recebemos o poeta e tradutor Miguel Filipe Mochila, um cúmplice que tem gozado o desterro e nos vem falar do buen vivir, da graciosidade das Caraíbas, da convivialidade, de um ideal de mutualidade e de interdependência entre pessoas, outras espécies e o ambiente. 

Sunday Jul 23, 2023

Dado o grau de inconsciência, a vida desinteressou-se de nós, e há uma nostalgia do túmulo que se sobrepôs aos nossos desejos. Sendo a realidade aquilo que é, sonha-se com vingança e, artisticamente, talvez esteja na altura de as musas nos darem cabo do canastro. Enquanto isso, aí fora tudo engendra bestas apressadas, industriosos monstros, ao passo que os mundos entrevistos e murmurados na cama enchem-nos de vergonha. Mas agora mais do que nunca era preciso que fosse posto a circular “um convite a não se levantarem esta manhã e ficarem com alguém na cama, a fabricar instrumentos musicais e máquinas de guerra”, uma que em vez de fazer mais baixas, desse alta aos que estão por aí tão mal aproveitados. Está outra vez quase tudo por fazer, ou, talvez melhor, por desfazer. Hoje, ser-se sensível ao mundo significa dar conta de todas as fases e metamorfoses desta doença que se ocupa inteiramente das nossas vidas. Quando todos procuram a evasão e o descanso, buscando refúgios para se declararem de férias, e sobretudo quando imploram um momento de tréguas é que fica claro como a guerra é a condição normal. Os vermes de um lado, esses anjos desmoralizados do outro, mas a vida resiste e começa de novo a cada dia em segredo, graças àqueles que persistem nesses gestos que não podem ser medidos nem contabilizados, os que resistem do lado de uma vida secreta. Para nos acompanhar, desta vez tivemos connosco Luís Filipe Parrado, professor de Português há três décadas, uma das presenças mais discretas e, ao mesmo tempo, das mais empenhadas na divulgação da poesia sem um programa nem fronteiras de qualquer espécie, comprometendo-se apenas, tal como acontece na poesia que ele mesmo vem escrevendo e publicando, com esse desejo de que o mundo tenha notícias daquilo que acontece do outro lado da vida.

Monday Jul 17, 2023

Andamos a chafurdar em narrativas simplistas, enredos que servem de funil para a moral engarrafada, e há por aí juízos enlatados para todas as ocasiões, por outro lado, a literatura em geral, e o romance em particular, depois deste naufrágio miserável, sobrevive por aí em pequenas ilhas, enquanto no continente vão propondo à circulação toda uma linha de mediocridades híbridas que se alimentam dos resíduos da actualidade e das histórias pessoais. Como notava Milan Kundera, "a maior parte da produção romanesca de hoje é feita de romances fora da história do romance: confissões romanceadas, reportagens romanceadas, ajustes de contas romanceados, indiscrições romanceadas, denúncias romanceadas, lições políticas romanceadas, agonias do marido romanceadas, agonias do pai romanceadas, agonias da mãe romanceadas, desflorações romanceadas, partos romanceados, romances ad infinitum, até ao fim do tempo, que nada dizem de novo, não têm qualquer ambição estética, não trazem qualquer mudança nem à nossa compreensão do homem nem à forma romanesca, parecem-se uns com os outros, são perfeitamente consumíveis de manhã, perfeitamente descartáveis à noite". Para falar disto e de outras tantas merdas, contamos esta semana com uma das últimas contratações para o plantel da Língua Morta, um distribuidor de jogo que apareceu de galochas preparado para esta partida de futebol na estrebaria.

Tuesday Jul 11, 2023

É o que dá andar nisto como quem sai à caça de quimeras: pedimos Quixote, sai-nos um Sancho, vamos aos gambozinos, damos com osgas domésticas, tínhamos visto por aí um crítico desaustinado e afinal damos com outro reitor da Universidade do eu-e-as-coisas-ao-meu-redor. Às vezes é assim. Filho de Júlio Pomar, teve as chaves da chafarica e fez um percurso privilegiadíssimo no jornalismo, impondo-se sobretudo enquanto crítico de arte, com bagagem e conhecimento de causa, sem alergias a desmontar essas cadeias de favores e modelos da imposição dos bonzos que nos querem enfiar pela goela. De qualquer modo, sabe muito do que sabe e quanto ao que não sabe geralmente também não lhe interessa. É uma voz incómoda e pertinente, um pragmático que desata aos espirros se lhe vamos com argumentos gizados na tradição da crítica das indústrias culturais ou da consciência. Mas até Marx ainda foi. Alexandre Pomar é o convidado da semana.

Monday Jul 03, 2023

Depois de ser dispensada do programa das aulas de português, estava na altura de trazermos de volta essa figura tão malquista como crucial d’Os Lusíadas, esse grande dissidente face aos desvarios de uma certa nobreza que continuamente nos leva a embarcarmos como ratos na nau catrineta das suas fantasias. Numa época de apoucamento da língua, de cedência a toda a ordem de facilitismos, manigâncias e baldrocas, convém mesmo expulsar quem tem muito claro onde tudo isto nos leva. “Lá vem a Velho do Restelo”, dirão alguns. “Por sinal velha e também do Restelo, desde longa data, para além de fiel leitora do poeta, criador da venerável figura”, assim se reconhecia Maria do Carmo Vieira numa das suas crónicas no Público. Quando estamos todos à espera que os professores por fim percam as estribeiras, e imponham uma ruptura verdadeiramente dolorosa num esforço para salvar a escola pública, quisemos falar com uma mulher que soube assumir uma postura exemplaríssima e até às últimas consequências, vendo-se obrigada a abandonar a profissão a que dedicou toda a sua vida, reconhecendo que não podia fazer outra coisa senão desobedecer, não acatar ordens de lacaios imbecilizados pelo poder, salvando-se da degradação a que hoje toda aquela classe é submetida, numa altura em que o próprio país não percebe que a paixão está reservada àqueles que souberam e sabem arriscar, em grandeza e miséria, “a sua vida inteira, todos os dias”. E que esse é o verdadeiro sentido da liberdade, que exige tudo e é sempre difícil, e que deveria ser o requisito essencial de quem assume a tarefa de transmitir às gerações seguintes os conhecimentos que nos fazem sentir o balanço desta nossa aventura comum.

Sunday Jun 25, 2023

Desta vez, e sendo o episódio 13, isto foi para a desgraça completa. Com uma boa zurrapa a afinar os instrumentos, saímos de submergível, e enfiámo-nos no mar arrastando literatos aos gritos pela mãezinha, a mandarem sms's e a baterem com as chaves e os anéis um morse muito aflito, com instruções sobre como preparar a edição póstuma do conteúdo das suas tantas gavetas. Fomos depressa ao fundo arrastando o meio literário que mais se oferece em todos os portos, e o nosso Ahab foi o Luís Miguel Rainha, a tilintar por todos os lados e a deixar atrás de si um mar pingado no vasilhame, este estulto velhaco, sacripanta sem palas, com um papagaio roxo no ombro que fala em verso manco e dá pelo nome de Chéu, com o hábito de andar aos estalos no bicho a tentar afiná-lo, é um melómano além de um exímio tocador de rabeca, tuba e tudo o que guinche e ajude à festa se soprado com jeito. Se muitos o conhecem como um grande provocador, a verdade é que é também um grande pinga amor das redes, e o autor de obras publicadas em casas tão zelosas como a Tinta-da-China, mas também naquele antro de putas e delinquentes que é a Língua Morta, tendo, por isso, sido excomungado do barbaristão mediático, e só se encontrando em festivais desses que se fazem à volta de um pires de tremoços e onde não falta sequer a escarradeira. Não vai dar para fazer um resumo confiável, pois só as sereias sabem do que falámos, mas aqui fica uma hipótese: falámos de fantasmas soluçantes, inteligências mercantes, tubarões sem dentes, sabonetes cheios de pêlos, e, mais geralmente, do código de incivilidades e piratarias de onde retiramos as nossas orações... No fundo, divertimo-nos a vomitar nesse vosso grandioso mar cujo sal são lágrimas de Portugal, isto segundo o chato-gpt-metafísico-e-de-bigodinho que tem alimentado com a sua posteridade tanto crocodilo.

Wednesday Jun 21, 2023

"Uma simples frase mais bela, um simples adjectivo mais acertado tem de atravessar imensas camadas de lama e esterco para enfim brilhar. As histórias da literatura só falam do brilho. Mas nunca da esterqueira donde emergiu. E é no esterco que sinto uma grande parte de mim", confessava Vergílio Ferreira no seu diário, e serve-nos isto como balanço quando há tanta resistência a que se fale dos aspectos mais rudes e sujos da edição, e certamente deslustrando os mitos e o prestígio quando o sector nas últimas décadas se viu tomado por uma engrenagem especializada em sangrar até à última gota esse prestígio, sempre com vista a intrujar o leitor. São raros hoje os editores que se batem para resgatar aquele brilho sem esconder todo o esterco em que diariamente é preciso arrastar-se para levar um livro em condições até às mãos do leitor. Vladimiro Nunes usa a corda que tem ao pescoço para se lançar adiante, e está a criar o tipo de catálogo que para uns lembra e a outros explica o gosto de ter crescido em casa de pais ou avós que liam muito, que tiveram o cuidado de organizar a biblioteca de tal modo que as fases de crescimento pudessem ficar marcadas pela altura das estantes. Agora chegou a sua vez de passar o testemunho. Além do empenho em recuperar a obra de autores tão admiráveis e bastante maltratados, como Manuel de Lima ou Natália Correia, tem sido um dos editores que de forma mais criteriosa se vem esforçando por criar uma biblioteca que acompanha aquele que ainda gatinha até que começa a trepar as estantes para chegar a volumes que deixam muito boa gente nervosa, andando a colher gemas de e.e. cummings, Faulkner, Ted Hughes, Virginia Woolf, entre outros, dirigidas aos mais novos. Vamos por aí e por outros lados na tentativa de achar um rumo entre sinais antigos e que hoje se nos adiantam.

Monday Jun 12, 2023

Temos tido poucos capitães no nosso espaço literário, poucas oportunidades de nos vermos guiados para alto mar ou sequer alta noite em enormes navios de espelhos, esses onde o tempo se confunde de tal modo que nos oferece o delírio de verdadeiras delícias quiméricas, esses capitães cujo grito ou o silêncio nos inunda o sangue e os nervos de tal modo, de tal modo que através dele todos somos capitães, e quando um entre nós se revolta há logo dez mil insurrectos. Fernando Ramalho, livreiro e dinamizador da Tigre de Papel, tem sido um desses raros espíritos capazes de dar o tom, escrutar o mar do fundo, e vem-no fazendo a partir da mais discreta das profissões, a do traficante de outras vozes. Numa altura em que a capital portuguesa é uma cidade sitiada, restam duas ou três livrarias que, como navios de infindáveis ecos, sem se deixarem dominar por qualquer bando de piratas de bidé, mantém um curso inspirador e oferece a perspectiva de outras rotas, agarrando ventos abruptos de modo a que ainda que alguma coisa aconteça. Estas poucas livrarias mantêm-se aferradas a esse pólo imaginário que desmagnetiza os aparelhos mais ordinários de navegação. Como nau encalhada, encontramo-la por ali, em Arroios, com a sua tripulação de fantasmas de variadas épocas e o murmúrio dos anzóis bem fundo nas grandes massas de água numa paisagem discreta, um balanço de mil conversas e desavenças, o tal mapa que oferece às coisas sobre ele dispostas um relevo e um peso concretos para que cada um possa cultivar a sua miséria, essa que, como vincava Álvaro Mutis, é a verdadeira matéria perdurável deste nosso episódio breve sobre a terra. Fomos falar com este livreiro numa tentativa de esquissar os regulamentos internos de um sindicato do crime literário e de eventuais propostas de um colapso que cante.

Wednesday Jun 07, 2023

A degradação também se faz de um infindável repertório de ecos, repetições que parecem vincar algo de decisivo, mas que, na verdade, vão corroendo, deslocando o sentido até este se tornar demasiado vago, inexpressivo. E, nisto, damos por nós em busca de uma voz que não proceda de um olhar emprestado, ou roubado. Como escreve Rui Nunes no seu mais recente livro ("Neve, Cão e Lava"), lêem-se "tantos poemas, tantos romances, que não passam de olhares emprestados, roubados".  Não são os temas de uma escrita o que faz a diferença, não é o porquê mas o como, a que custo, se com unhas e dentes, se simplesmente porque se tem algum tempo para matar. Tanto do que hoje se publica tresanda a essa forma de decomposição, a um desejo de agradar, de estar de acordo com o que já nos cerca até ao sufoco. Mas é por meio da recusa que uma escrita impõe um audaz desafio à ordem geral.  Como assinalou António Guerreiro, a escrita de Rui Nunes faz-nos ver que não basta dizer “merda” para que um texto cheire mal, nem basta dizer “sangue” e “carne mutilada” para fazer emergir a violência: é preciso também uma sintaxe, proceder à mutilação das frases e do ideal narrativo. Fortemente implicada numa reflexão e denúncia dos elementos mais traiçoeiros da actualidade, a sua obra rejeita a superfície, e cose-se num nível em que cada um dos elementos que participam na materialização da linguagem estão sensíveis, feridos e frágeis tanto como truculentos. Tudo na escrita deste autor pratica a denúncia, mas não o faz sem conhecer de perto o mal. Esse é o grande objecto da sua investigação. E no seu percurso passa amiúde por uma "gente benigna que se distrai", à margem, ignorantes ou desinteressados, depara-se com esses escritores que "de palestra em palestra falam da fome e da guerra, bebem um uísque, expõem certezas e maliciosas dúvidas". Acentua que "esta gente carrega uma antecipação, um funeral, um obituário, uma última vez na glória de um telejornal". Insiste em recordar ao futuro as ruínas sobre as quais foi erguido, e como "qualquer história tem mil anos de sufoco, uma lei, lugares certeiros de morte". 

Friday Jun 02, 2023

Cheira a sangue a mancha de vinho na toalha, e deve ser sinal de que a inteligência volta enfim a encarnar, a ter gestos largos, expansivos, a ver e tocar as formas diariamente. Depois de três anos de suspensão e de uma certa necrose social, está na altura de falarmos sobre o que (nos) aconteceu. Tentamos recuperar o sentido da proporção e da razão ardente para falar daquilo que nos foi proibido, de todo o clima de ameaça e recuperar o sal dos velhos itinerários, fazer o caminho entre as ruínas vivas num mundo de mortos em vida. Livres das medidas restritivas e dos constrangimentos ou até do fedor moralista da pandemia, podemos agora olhar em retrospectiva os dias em que nos vimos desfocados ao beber do ar esse horror sereno das máscaras que nos olhavam, faltando sempre um gosto a guerra. Vasco Gato foi dos poucos que acusou o pavor dessa forma de abandono, dessa alegre dissolução do espaço comum e dos rituais que nos ligam. "Um corpo só é possível num/ ritual de vários corpos", vincava nuns versos de um poema que, em finais de 2019, viria a mostrar-se desoladoramente premonitório. Hoje, buscamos de novo uma data viva, enfrentando o rosto devorado que agora se descobre ainda mais inexpressivo, tentamos sair dos quartos deixados à deriva, onde nos era impossível tocar a nossa raiz e recobrar-nos, provar os frutos com sabor a tempo.

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