Enterrados no Jardim
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
Episodes

Monday Jun 12, 2023
Monday Jun 12, 2023
Temos tido poucos capitães no nosso espaço literário, poucas oportunidades de nos vermos guiados para alto mar ou sequer alta noite em enormes navios de espelhos, esses onde o tempo se confunde de tal modo que nos oferece o delírio de verdadeiras delícias quiméricas, esses capitães cujo grito ou o silêncio nos inunda o sangue e os nervos de tal modo, de tal modo que através dele todos somos capitães, e quando um entre nós se revolta há logo dez mil insurrectos. Fernando Ramalho, livreiro e dinamizador da Tigre de Papel, tem sido um desses raros espíritos capazes de dar o tom, escrutar o mar do fundo, e vem-no fazendo a partir da mais discreta das profissões, a do traficante de outras vozes. Numa altura em que a capital portuguesa é uma cidade sitiada, restam duas ou três livrarias que, como navios de infindáveis ecos, sem se deixarem dominar por qualquer bando de piratas de bidé, mantém um curso inspirador e oferece a perspectiva de outras rotas, agarrando ventos abruptos de modo a que ainda que alguma coisa aconteça. Estas poucas livrarias mantêm-se aferradas a esse pólo imaginário que desmagnetiza os aparelhos mais ordinários de navegação. Como nau encalhada, encontramo-la por ali, em Arroios, com a sua tripulação de fantasmas de variadas épocas e o murmúrio dos anzóis bem fundo nas grandes massas de água numa paisagem discreta, um balanço de mil conversas e desavenças, o tal mapa que oferece às coisas sobre ele dispostas um relevo e um peso concretos para que cada um possa cultivar a sua miséria, essa que, como vincava Álvaro Mutis, é a verdadeira matéria perdurável deste nosso episódio breve sobre a terra. Fomos falar com este livreiro numa tentativa de esquissar os regulamentos internos de um sindicato do crime literário e de eventuais propostas de um colapso que cante.

Wednesday Jun 07, 2023
Wednesday Jun 07, 2023
A degradação também se faz de um infindável repertório de ecos, repetições que parecem vincar algo de decisivo, mas que, na verdade, vão corroendo, deslocando o sentido até este se tornar demasiado vago, inexpressivo. E, nisto, damos por nós em busca de uma voz que não proceda de um olhar emprestado, ou roubado. Como escreve Rui Nunes no seu mais recente livro ("Neve, Cão e Lava"), lêem-se "tantos poemas, tantos romances, que não passam de olhares emprestados, roubados". Não são os temas de uma escrita o que faz a diferença, não é o porquê mas o como, a que custo, se com unhas e dentes, se simplesmente porque se tem algum tempo para matar. Tanto do que hoje se publica tresanda a essa forma de decomposição, a um desejo de agradar, de estar de acordo com o que já nos cerca até ao sufoco. Mas é por meio da recusa que uma escrita impõe um audaz desafio à ordem geral. Como assinalou António Guerreiro, a escrita de Rui Nunes faz-nos ver que não basta dizer “merda” para que um texto cheire mal, nem basta dizer “sangue” e “carne mutilada” para fazer emergir a violência: é preciso também uma sintaxe, proceder à mutilação das frases e do ideal narrativo. Fortemente implicada numa reflexão e denúncia dos elementos mais traiçoeiros da actualidade, a sua obra rejeita a superfície, e cose-se num nível em que cada um dos elementos que participam na materialização da linguagem estão sensíveis, feridos e frágeis tanto como truculentos. Tudo na escrita deste autor pratica a denúncia, mas não o faz sem conhecer de perto o mal. Esse é o grande objecto da sua investigação. E no seu percurso passa amiúde por uma "gente benigna que se distrai", à margem, ignorantes ou desinteressados, depara-se com esses escritores que "de palestra em palestra falam da fome e da guerra, bebem um uísque, expõem certezas e maliciosas dúvidas". Acentua que "esta gente carrega uma antecipação, um funeral, um obituário, uma última vez na glória de um telejornal". Insiste em recordar ao futuro as ruínas sobre as quais foi erguido, e como "qualquer história tem mil anos de sufoco, uma lei, lugares certeiros de morte".

Friday Jun 02, 2023
Friday Jun 02, 2023
Cheira a sangue a mancha de vinho na toalha, e deve ser sinal de que a inteligência volta enfim a encarnar, a ter gestos largos, expansivos, a ver e tocar as formas diariamente. Depois de três anos de suspensão e de uma certa necrose social, está na altura de falarmos sobre o que (nos) aconteceu. Tentamos recuperar o sentido da proporção e da razão ardente para falar daquilo que nos foi proibido, de todo o clima de ameaça e recuperar o sal dos velhos itinerários, fazer o caminho entre as ruínas vivas num mundo de mortos em vida. Livres das medidas restritivas e dos constrangimentos ou até do fedor moralista da pandemia, podemos agora olhar em retrospectiva os dias em que nos vimos desfocados ao beber do ar esse horror sereno das máscaras que nos olhavam, faltando sempre um gosto a guerra. Vasco Gato foi dos poucos que acusou o pavor dessa forma de abandono, dessa alegre dissolução do espaço comum e dos rituais que nos ligam. "Um corpo só é possível num/ ritual de vários corpos", vincava nuns versos de um poema que, em finais de 2019, viria a mostrar-se desoladoramente premonitório. Hoje, buscamos de novo uma data viva, enfrentando o rosto devorado que agora se descobre ainda mais inexpressivo, tentamos sair dos quartos deixados à deriva, onde nos era impossível tocar a nossa raiz e recobrar-nos, provar os frutos com sabor a tempo.

Tuesday May 30, 2023
Tuesday May 30, 2023
Estar vivo hoje parece tão fácil. E talvez até fosse, não se desse o caso das coisas estarem cada vez mais estranhas, ou simplesmente estúpidas. Quando a vida parece apontada para o raio que a parta, são os degenerados e os delinquentes que assumem os comandos da nave. Manuel João Vieira brinca há décadas com essa hipótese dos imbecis tomarem conta e desta porra triste perder mais alguns parafusos, de tal modo que depois de todo o mal acumulado com o pó, comece a andar por aí um vendaval que torne ainda mais difícil respirar. Buscámos um intervalo na sua toca, um faustoso pardieiro, onde parece viver um batalhão desordeiro, talvez por ser a casa que divide com variações drásticas de si mesmo. Entre o músico desfraldado e que deixou por aí uma noite vasta e desabusada, espíritos levados na carruagem etílica, cantando desaforadamente o tipo de canções que se acotovelam e digladiam para tomar o lugar do hino desta nossa pátria chistosa, ou o pintor isolado que, depois de deitar fora o primeiro esquisso, segue os riscos e vai por ali fora, sem dar hipótese a ninguém de lhe seguir o rastro, e, por fim, há ainda o professor de artes que tenta provar que há um método na sua loucura. Em suma, um monstro de elementos difíceis de combinar entre si, um tipo que não está muito à vontade nos lugares onde é para se estar a fazer ares, a treinar a pose, a imitar as figuras de alto coturno e o diabo a sete. Há quem considere o Manuel João como o mais legítimo herdeiro do espírito surrealista do Café-Gelo, pelo humor, pela ousadia, pelo excesso. Ele não embarca em mitos de espécie nenhuma. Prefere ficar no porto a fazer barquinhos de papel para chocarem contra os grandes cruzeiros cheios de turistas, querendo afundá-los.

Friday May 19, 2023
Friday May 19, 2023
Queres ver que depois desta continuam a jurar a pés juntos que não há polémicas no meio literário português? Se calhar até têm razão, porque para haver estrilho, drama, seja o que for, antes de mais nada, era preciso que esses mesmos que nunca dão por nada dessem por si mesmos, tivessem algo que os fizesse viver que não fosse apenas algum esquema que lhes sustente a videirunha à portuguesa. No meio de patranhas sucessivas e incontroláveis é possível que tenham perdido o fio à meada e talvez por isso a maior parte prefira agir na sombra como os percevejos e as ascárides dos intestinos dos cães. Ao sétimo episódio fomos buscar reforços e, ao mesmo tempo, ensarilhar cornos com o homem baptizado por um dos nossos conachos de plantão como o "crítico bulldozer". João Pedro George, cronista e sociólogo que se lançou sobre o campo literário português como uma praga das antigas, graduou-se faz uns bons anos com “Puta Que os Pariu!”, uma das mais criteriosas e proveitosas biografias por cá aparecidas, e que garantiu a Luiz Pacheco um fantasma com ossos pesados o suficiente para esbofetear e deixar marcas num meio literário com tanta pressa em esquecer os vultos que mais sombra fazem aos seus pequenotes. O cadáver literário anda aí, arrastado pela corrente, e ninguém o puxa das águas. Com tanto exame das propriedades do espírito da literatura, o que tem faltado são perícias forenses. E mesmo sem pensar em grandes testes de laboratório, é imensa a margem para alinhar pistas relevantes sobre um crime que todos reportam, todos lamentam, mas poucos se arriscam a fazer pela literatura o que um Poirot, Miss Marple ou Holmes fizeram pela resolução de homicídios. Ainda que ficcionais, os princípios, a dedicação a recolher provas é a mesma, e aquela que busca uma explicação aplica-se do mesmo modo à realidade. Graças a um insaciável espírito inquisitivo, e alimentado pela sua inclinação obsessivo-compulsiva, João Pedro George prova ser um temível farejador dessas pistas e rastros que conduzem aos aspectos mais sinistros da nossa vida cultural, desmontando assim enredos sórdidos ou simplesmente patéticos. George é o nosso comissário Maigret no que toca a crimes literários. Não com um faro tão apurado como Poirot, não tão surpreendente como Miss Marple, nem tão genial como Holmes, mas ferozmente cínico, com os pés assentes na terra, paciente, empenhado, é o crítico que, entre nós, menos receio tem de arregaçar as mangas, sujar as mãos nos aspectos menos gloriosos, mais patéticos da vida literária.

Thursday May 11, 2023
Thursday May 11, 2023
Perante a vida desencantada, perante toda esta decadência generalizada da vida, que está na raiz da nossa desmoralização actual, todos apenas parecem buscar consolos ou formas de ajustar o cinismo para abrir espaço a ressalvas e excepções, quase sempre circunscritas ao espaço da vida mais íntima. Quanto ao mais, todos parecem ter feito as pazes com uma cultura que já em nada coincide com a vida, e que, como refere Artaud, se mostra cada vez mais uma cultura concebida antes para a tiranizar. "Depois da Lei", de Luhuna Carvalho, foi um dos raros testemunhos em anos recentes que, entre nós, procurou um confronto honesto com esse exercício interminável de indignação, nostalgia e ignorância que tomou conta das formas de resistência numa época em que o catálogo dos heroísmos ao dispor nunca foi tão inclusivo nem mais inofensivo. Foi para se pensar uma nova arte da guerra, através do encontro com o outro, expresso numa forma de oposição e antagonismo, mas também em sinal de respeito e com capacidade de transigência que fomos falar com este activista relutante.

Monday May 01, 2023
Monday May 01, 2023
Neste dia do trabalhador, exigia-se que fôssemos ouvir a voz de um desses proletários que, às coisas da cultura, não deixam que falte um chão, mas também um caçador de brilhos capaz de segurar o lustro e os astros para que o céu não pareça estar a cair-nos em cima, e a fazer de todos nós uma gente atarracada. Fomos, assim, falar com o Changuito, como as ruas o conhecem – Mário Guerra, como se lerá nalgum cartório –, uma lenda já bem robusta entre aqueles que a época não tornou míopes para as ocorrências que não alinham pela bizonhice do nosso cortejo cultural, um desses mais severos e inspirados tratantes de livros que mantém aberto um porto de onde saem e partem os raros navios insurrectos nas águas cada vez mais chocas do sector livreiro. Depois de uma primeira incursão, que teve na Rua Cecílio de Sousa (Príncipe Real) essa margem para frotas de papel vindas de todo o mundo, mas também para embarcações fantasmas ou mesmo para gente tresvariada que atravessa oceanos a nadar à cão, nos últimos quatro anos persiste de porta aberta, agora no número 26 da Rua de São Ciro, na Lapa, sendo vizinho da frente de Eduardo Catroga, e forçando quem lhe frequenta o espaço a inverter certos hábitos, quase ao ponto de ser quem sai da livraria que tem de limpar os pés, para não sujar de ânimo as ruas, que estão hoje bem mais estreitas e menos aventurosas que o espaço que ele guarda e abastece.

Wednesday Apr 26, 2023
Wednesday Apr 26, 2023
Os cravos já podem respirar de alívio. Aos que não se safaram, cumpriu pelo menos sacrificarem-se em nome desse folclórico garridismo que corta as ruas uma vez por ano antes que a vida retome o castigo e as injúrias em tons de cinzento. Estamos fadados a celebrar pela eternidade fora um futuro a que ninguém teve a decência de abrir a porta, e assim prosseguem as missas solenes e as milhentas exposições em honra dessa perpétua ausência. As comemorações, como notava António Guerreiro faz já uns anos, as oficiais e as não oficiais, as da esquerda, as do centro e as da direita, sem surpresa, provaram uma vez mais ser "completamente inócuas, politicamente anestesiadas, de um conformismo idiota que serve sem a mínima reserva a reificação do passado. Por elas, não passa nem uma ligeira brisa de pensamento. Tudo desertou, ficou apenas o palco vazio de uma ideia." O mês mais ansiado, aquele que chegou a perfumar-nos os sonhos, veio assim a tornar-se o mais cruel, enquanto a tal democracia, quando foram ver, cutucar a mirífica criatura com a vara, pôr-lhe um espelho junto ao nariz, afinal estava defunta, e Portugal realizava-se uma vez mais como a anti-nação. Mas temos os cravos, que amanhã terão já sido varridos, e os escravos para não deixar que essa desoladora imagem deixe um gosto amargo no fim da festa.

Tuesday Apr 18, 2023
Tuesday Apr 18, 2023
Ganhámos os três, e bem podem dizer que já andamos a pedi-las. Porta atrás, porta pelo corredor, metemos a cabeça nos quartos e damos um berro, desenhamos uma gaifona e esperamos cá fora, diante da serenata dos cães da vizinhança, batendo com os nós dos dedos nas paredes a chamar para virem dançar as amiguinhas, depois pisamo-las todas. Na verdade, o que mais queremos é arrepiar caminho. O Musil está para ali a resmonear que "o mundo dos que escrevem (...) está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância".Temos de refazer as nossas cidades, começar por uma mesa, uma conversa noite fora. Ganhar ânimo, retirar o mundo da sua dormência. Apalpá-lo, mexer-lhe nas partes. O Musil continua a puxar-nos a manga, quer ainda acrescentar que “hoje, numa época em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatães usam as mesmas fórmulas com mínimas diferenças, cujo percurso nenhuma pessoa ocupada tem tempo de investigar, num tempo em que as redacções dos jornais são constantemente incomodadas por gente que acha que é um génio, é muito difícil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pés diante da porta da redacção são suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da «polis»." Uma vez que não temos já direito aos cafés, às nossas margens divagantes, façamos aqui um enredo de escutas para ver se afinamos os instrumentos, treinando o coração para os sobressaltos que se avizinham.Errata:Às tantas, Stephen Jay Gould, um biólogo evolucionista e popular escritor de divulgação científica, faz aqui um cameo, completamente a despropósito. Na verdade, o título que buscava era "O Segredo de Joe Gould", de Joseph Mitchell, editado por cá pela Dom Quixote.

Thursday Apr 13, 2023
Thursday Apr 13, 2023
Continuamos... Desta vez, para não nos virarmos já para o outsourcing, indo buscar luminárias que tragam algum prestígio à coisa, mas também não querendo dar a impressão de que isto vai tudo a mata-cavalo, aqui ficam uns versos do poeta Víctor Botas para situar minimamente a conversa: "Falam da natureza, e que é bela/ – dizem sem mais razões –; eu prefiro/ falar de um caos, aziago e feroz,/ sem ordem nem plano nem outra coisa/ além deste cego acaso que nos acossa/ a golpes de cachaço."É chegada, assim, a hora de falarmos de algumas das nossas amiguinhas lá no jardim. Vamos brincar um pouco ao cinema negro com aqueles que sabem sempre reinventar-se e que, mesmo quando caem, estão tão ensinados que não ficam espapaçados nem feitos num oito, nem chegam a ser afligidos por dores menos espirituais, como o desemprego.