Enterrados no Jardim
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
Episodes

7 days ago
7 days ago
Já andamos nisto há cem episódios, a tentar desenhar essa periferia monstruosa em torno de uma cultura que se excede de tão recomendável, debitando exemplos, listas de autores e obras, “ideias flutuantes”, enaltecendo-se na sua acumulação esgotante, com esse enredo esfalfado em que as mesmas personagens inofensivas aperfeiçoam os gestos de mármore, com os seus conhecimentos fragmentados, desprovidos de um eixo, de um sentido de unidade e de um desejo de acção. Vemos por aí tudo tão mal digerido, sendo tão raros aqueles que trabalham a qualidade da sua culpa, quando um embate já vai exigindo outra pele, uma outra resolução das mentes, que por estes dias parecem cada vez mais baratas, mais submissas. Incapazes de urdir esses ventos que levam o fruto e a casca, estende-se uma terra cada vez mais longe de qualquer nexo profundo, onde se deixam embalar por contos infantis. Talvez só se possa produzir alguma perturbação cercando a cidadela, reunindo as forças de tudo o que esta procura expulsar para fora dos seus muros. Nem tudo pode desapontar, e se os insectos intemporais que mergulham o seu ferrão na carne destes dias nos dizem que o mundo está a dissipar-se a uma velocidade atroz, resta estudar os elementos antigos das grandes tradições. “Outros escrevam biografias/ passo a passo e dia a dia/ como se exumando o passado/ renascessem os biografados/ seguidos de extensa bibliografia// Estas, não: são vidas recuperadas/ por golpes fundos e agudos/ sem intenção de mostrar tudo,/ só querendo, no fim das facetas,/ revelar vidas lapidadas/ pela visão de um poeta”, eis o que anota Domingos Pellegrini a propósito do volume a que Leminski deu o singelo título “Vida”, a partir de quatro biografias (Trotski, Bashô, Cruz e Sousa e Jesus) que lhe fornecem os caracteres de uma radicalização em que é possível investigar como a vida poderia ou deveria ser, caso ultimasse esse sentido de “uma política da arte como experiência”. Jean Baudrillard ajuda-nos a compreender o que possa ser uma estratégia capaz de separar todas as letras do vazio, de virarmos a nosso favor o elemento de desagregação num tempo em que tudo conspira para nos separar. “Cansadas da dialéctica do sentido, as coisas encontraram um meio para lhe escapar: o de proliferarem até ao infinito, o de se potencializarem, o de se sobreporem à sua essência, numa escalada até aos extremos, numa obscenidade que lhes servirá, doravante, de finalidade imanente, e de razão insensata. Nada nos impede de pensarmos que é possível obter os mesmos efeitos numa ordem inversa – outra insensatez, também ela vitoriosa. A insensatez é vitoriosa em todos os sentidos – este é o próprio sentido do Mal. O universo não é dialéctico – está condenado aos extremos, não ao equilíbrio. Condenado ao antagonismo radical, não à reconciliação nem à síntese. Este é também o princípio do Mal, e exprime-se no génio maléfico do objecto, exprime-se na forma extática do objecto puro, na sua estratégia de vitória sobre o sujeito. Obteremos formas subtis de radicalização das qualidades secretas, e combateremos a obscenidade com as suas próprias armas. Ao mais verdadeiro do que o verdadeiro, oporemos o mais falso do que o falso. Não oporemos o belo e o feio, procuraremos o mais feio do que o feio: o monstruoso. (…) Nesta escalada até aos extremos, será talvez necessário opô-los radicalmente, mas será igualmente necessário juntar os efeitos da obscenidade e os efeitos da sedução. Procuraremos algo de mais rápido do que a comunicação: o desafio, o duelo.” Para este episódio fomos ao último reduto, ali onde a cultura se vê forçada a fazer o caminho todo do princípio do mundo até ao fim, sem pressas, tornando claro como o real exige paciência. Parece haver uma inversão, no sentido em que, hoje, começamos sempre pelo fim, e o mais difícil é recuperar as raízes. Mas nesse antro tão pouco recomendável, o habitual regime do beatério cultural aparece-nos cercado por todos os lados, e aquilo que o ameaça é que provoca em nós calafrios, abrindo-se num enredo de possibilidades clamorosas. Como assinala Louisa Yousfi, “a barbárie é uma vitalidade primitiva que permite a escrita verdadeira, o gesto puro, a poesia”. Pedimos ao minotauro que nos abrisse a porta do seu labirinto. A Poesia Incompleta persiste nesta cidade de muralhas derruídas como um castelo e uma latrina, um laboratório para os exercícios de expansão e contracção das virtualidades que a poesia enuncia e aprofunda, dessa lei da relatividade mais generosa, aplicada aos sujeitos. Talvez seja a última das moradas com a porta irrestritamente aberta para a rua onde se dá em directo essa operação de volte-face em que o culto leva a melhor e ainda troça e injuria as formas do espectáculo, e isto com um Ahab ao leme, o maior tirano e um dos raros insurrectos, encarnados ambos numa mesma figura trágica, comovente, mas com um humor que é uma verdadeira devastação inteligente, uma figura admiravelmente esquizofrénica, que dirige uma escavação arqueológica e um instituto de etnografia a partir desses projectos que quase todos sonham (ou dizem que sonham) e que quase sem excepção têm a lucidez de não levar por diante, para não submeterem os seus sonhos a uma decepção fatal. Por isso, aquilo não é uma livraria, antes uma interminável operação de coração aberto a um dos últimos loucos sísmicos não trancado nalgum museu ou a definhar para benefício da nossa distracção turística num zoológico.

Wednesday May 07, 2025
Wednesday May 07, 2025
Para se ser um homem deste tempo ou até de outros, e variar, cumular, não basta estar vivo, como estamos todos, mais ou menos, tantos sem grande proveito, para si mesmos ou para a época, não basta isso, ainda é preciso ter ouvido, escutar a música que faz cada um, que fazemos todos, os que sabem arrancar notas ao seu instrumento, seja este qual for, ouvir como tudo isso depois se eleva, que sinfonia ou caos se gera... Se não se consegue uma harmonia de jeito, mas anda tudo aos encontrões, a produzir ruído, e se, muitas vezes, desencorajados, caímos no silêncio, acabamos sufocados debaixo do que cospe a telefonia. Ser de algum tempo é ser capaz de escutar e, ainda melhor que acompanhar, é achar a sua diferença, esse a mais capaz de impor uma inflexão, até valores próprios, chegar a conduzir num movimento ou noutro, disputar a batuta, ou desmoralizar o maestro, criar a sua escola, mesmo que pela calada, clandestina, sem horários, sem burocracia, só de impulso, paixão. Regatear com a época, dar-lhe o golpe, isso, sim, é tomar posição, extrair um sentido da geral, e compor mais que uma rima, uma solução, ou devotar-se à querela, aos embates, não conter na raiva, não se deixar abafar, mas explicar a liberdade por extenso, nos gestos, em actos. Inventar o seu carácter, produzi-lo na relação com os demais, como uma resposta, tendo em atenção aquilo que falta, tudo quanto nos sonegam, anulam. E aqui faça-se notar que a maior violência de todas pode ser o silêncio, apagar os outros, fingir que não se viu, distribuir a morte antes de tempo, vir aí fazer a sua justiça que passa apenas por cultivar relações, chegar aos lugares, e decretar o vazio, ainda lhe pôr em cima uma gente decorativa para irritar mais. Substitui-se com isto a vida por um desenho animado desses que passam só nos lares da terceira tentando empurrar de vez os velhos, neste país que se quer um imenso lar-fossa onde atirar quem nunca viveu. Esses que, por isso, muitas vezes mesmo que quisessem ir-se, acabar com isto, não sabem para que lado fica a morte. O combate está dificultado, hoje, mesmo por aqueles que lêem. O afastamento paga-se, a falta de um convívio sincero, truculento, animador já por si deixa as almas aí a criarem musgo, em vez de lhes arrancar as teias de aranha, as intrigas alimentadas em estado de paranóia, reforça-se a tibieza do carácter, a infantilidade nas convições. Ora, se a história da Cultura nos ensina alguma coisa "é a resolução das antinomias numa luta sem tréguas, é o combate implacável entre credos opostos", vinca Luiz Pacheco. Estão mal as coisas para quem veio para a literatura em busca de sinais dessa refrega. Estão pessimamente aqueles que, como ele, escolheram a literatura como um modo mais empenhado de superar o estilo gago da existência, e pôr algum sentido na trama dos dias. "Porque a minha vida, o meu trabalho (chamem-lhe ou não assim, pouco me importa) é escrever. Ler, para escrever. Ver, para escrever. E o que não sair em letras, está-me escrito na pele. Vida dura? acho que se percebe, tenho a pele curtida e colada aos ossos, mordida, alegrias, dores, frios e miséria." Estamos sobre o centenário daquele que mais intensa e empenhadamente zurziu no enredo que veio falsificar esta relação entre a vida e a literatura, todos esses modos de aliciamento e convite ao imobilismo, as estratégias de inibição e que trocam uma condição dinâmica e aberta a "um espontâneo movimento de polémica, de antagonismos inconciliáveis em riste", por um quadro de acomodação amorfa. Vimos assinalar aqui esta data, a intervenção e a coragem daquele que, como reconheceu muitas vezes, foi um tipo bera, um sacana, tendo sido capaz do pior, mas alguém que fez o que fez por se querer um tipo livre, "livre até à abjecção, que é o resultado de querer ser livre em português". Assim, em vez de cerimónias o que temos é um grande bolo onde afundar a tromba de uns quantos, e quisemos tomar de novo o pulso a um meio literário cujas imposturas ele não se cansou de expor e atacar. De resto, prova da condição moribunda deste são os silêncios falaciosos que permitiram que no ano passado viesse a lume uma obra inteiramente inédita e ninguém lhe pegasse, mesmo se os seus livros continuam a ser traficados a alto preço nos alfarrabistas, e se lhe vai sendo rendido um culto que não anda longe daquela forma de exploração sistemática póstuma do maldito, como pôde antecipar, falando no "aproveitamento do seu caso humano (deturpando-o) ou da obra por ele legada (amputando-a mesmo assim; colhendo nela apenas o que convém aos tempos que correm) manipulada por seres mesquinhos e gulosos que a serem contemporâneos do maldito, seriam (eram, está-se mesmo a ver, a perceber) os seus mais ferozes inimigos". Para discutir o seu exemplo e os textos que nos legou, chamámos o tipo (João Pedro George) que mais atenção lhe deu, que mais contribuiu para que à volta da sua obra se pudesse gerar um debate sério, não forçando a hagiografia, mas discutindo os elementos mais espinhosos, entre eles a forma como a sua lenda em muitos aspectos se tornou um adorno do próprio enredo que ele tanto combateu.

Friday May 02, 2025
Friday May 02, 2025
A um político nos nossos dias aquilo que deveríamos exigir antes de qualquer outra coisa é que tenha a disposição de acumular "um cadastro de prodígios", que o seu discurso se liberte do horizonte do provável, procurando formular uma profecia obscena e que passe pelo triunfo de uma voz maldita, de tal modo que aqueles que o oiçam se sintam já de certo modo culpados, capazes de vislumbrar essa realidade alternativa com uma precisão quase alucinante. Talvez não se possa resgatar a política sem uma boa dose de delírio, algo que não nos sujeite apenas à revelação do imediato. A voz deveria ser um modo de nos fazer ver o que está em falta, sobretudo tendo em conta que o quadro mediático tende a tornar irreal o próprio mundo. Como assinalava Steiner, "a televisão pode mostrar todos os massacres, todas as torturas e todos os acontecimentos de uma tal maneira que o imediato se torna para nós remoto, estranho e monstruoso, como se fôssemos crianças assustadas com o cair da noite". Talvez só restem como capazes de afectar a mudança aqueles discursos que possam aliciar-nos a mergulhar nesse território nocturno, reclamar de novo a heresia de viver a presença da queda. Aquele crítico recorda o exemplo de Claudel, acusado pelos seus detractores de uma heresia muito perigosa e grave: "acreditar não no céu, mas no inferno, acreditar no Mal, mas não no Bem". E Steiner tributava à sua época o conhecimento e o fascínio que sentia pelo mal. A verdade é que se pressente a impotência da política ou a sua profunda desonestidade por se limitar a falar em nome de uma inocência ou ingenuidade, e essa é a razão por que estamos desertos por ouvir vozes de outra ordem, que arrisquem suspender esse tom pastoso e cheio de boas intenções. "O papel que o artista desempenha na sociedade é o seguinte: redespertar os instintos anárquicos, primitivos, crucificados à ilusão de uma vida confortável", escreve Henry Miller. Fugindo ao ruído, a esse que domina o mercado como objecto de consumo indispensável, a arte surge como a possibilidade de uma paragem, uma intriga que encoraja em nós os actos que levem à destruição das condições úteis e necessárias ao dispositivo social. Há quem se satisfaça e regozije toda a vida com o mundo como ele se organizou, com o tempo como este ritmo que se infiltra nos corpos e soa tão alto que não deixa que quase ninguém escute os próprios pensamentos. Então, o que pedimos a uma suspensão abrupta? Que seja generosa, que cancele o ruído pelo tempo suficiente para que alguns possam voltar a reconhecer a voz que lhes é própria. Se alguns têm insistido que é preciso "organizar o pessimismo", "preparar-nos para sobreviver à cultura", há quem reconheça também como a cultura é precisamente aquilo que nos desmotiva, a tal coisa que vai embebendo o espírito, tornando-o pesado e impotente, sendo que, diante de uma ameaça terrífica, devemos apelar àquela vitalidade primitiva que age por impulso, com raiva, com uma ânsia absurda de esgotar em si todas as forças que lhe chegam como uma inspiração malévola. "De tanto viver nas trevas, acabámos por assinar um pacto com os monstros e as larvas que aí encontram abrigo. Esse pacto, temos agora de o romper e de nos atrever a olhar o dia, a fitar o nosso sol da Barbárie de frente" (Mohammed Dib). Deverá chegar um momento em que estejamos à altura de viver sem que tudo esteja já previsto de antemão, sem assumirmos que a melhor forma de se viver é com a captura total do dia de amanhã, sem margem para alguma dose de incerteza. Ao contrário do que se vem dizendo, talvez a nossa salvação tenha estado mais na hostilidade, e o bem seja uma província cercada pelo mal. Uma espécie de trégua entre adversários que aprenderam a temer-se. Neste episódio, vamos andar de volta das questões da habitação, e dos constrangimentos que o mercado tem imposto às cidades, ao ponto de, como um todo, as comunidades se terem visto expropriadas do espaço público, sendo-lhes retirada a capacidade de definir verdadeiras políticas de urbanismo. Quem nos veio dar algumas noções, algumas colheres de sopa numa ira que, às vezes, se fica pela saliva, foi o arquitecto e urbanista Tiago Mota Saraiva, um tipo que tem sabido aliar a sua acção profissional e enquanto professor a uma componente de intervenção e militância no sentido de combater a desigualdade e os vícios de um país que cada vez mais se divide entre os senhorios e os inquilinos de corda ao pescoço, entre outros ao deus-dará.

Thursday Apr 24, 2025
Thursday Apr 24, 2025
O que é decisivo transformar permanece quase sempre em segredo, leva o tempo necessário, não se apressa, mas, aos poucos, vai chegando à sua plenitude devastadora. Não leva tanto tempo como imaginam aqueles que preferem não pensar nisso, mas muitas vezes não chega a tempo de socorrer os que começam a sentir-se desesperados. Ainda assim há que aprender com essa espera, crescer com ela. Podemos ler sobre este movimento surdo no conto de duas cidades de Dickens, ouvir um diálogo entre esses que exigem que o tremor de terra cresça a ponto de engolir uma cidade. "Mas quanto tempo é preciso para que se dê um terramoto desses?", pergunta um deles. "Muitas vezes, leva bastante tempo. Mas quando chega a altura, quando ele vem, não demora muito a engolir a cidade, e faz em pedaços tudo o que encontra à sua frente. Entretanto, está sempre a preparar-se, embora não se veja nem se ouça. Esta é a vossa consolação. Guarda-a." É uma esperança diabólica. Algumas mulheres foram-se agarrando a isto, e quando falavam entre si, depois de dispensadas as ilusões de ordem romântica, detestavam ver-se vestidas por outros, envolvidas na miserável farpela que lhes foi destinada. Preferiam bater-se pela sua autonomia, pelas suas reivindicações profundas, mesmo que as expressassem desajeitadamente. "Na nossa época, para um espírito agudo, o ridículo, 'ser ridicularizado', é qualquer coisa de sublime. Sublime e inquietante", diz-nos Françoise Sagan. A partir do momento em que se reconhece que tudo isso que eles consideram “natural” não passa de uma grande impostura, necessária para a manutenção de uma determinada ordem simbólica, só existe uma razão para cada homem ou mulher que aprenda a desenvolver a inteligência da sua sensibilidade. "E nesta posição desequilibrada, procurando a queda como quem procura um repouso, encontram-se muitos dos nossos contemporâneos", adianta a escritora francesa. "Ou por uma pata, e esqueçamos os loucos de amor, os que caem numa armadilha, os doentes graves e alguns poetas." O delírio tem mais a ver com fazer outra coisa da vida. Alguns só dão por si mesmos em intrigas mirabolantes, só por meio de alguma lenda acham uma forma de alívio face à linguagem e às instruções do inimigo, e dos seus constantes desafios para a luta, que podem fazer-nos alhearmo-nos das nossas próprias vidas, do caminho que deve ser traçado à parte. Mas então, como quem desenvolve interiormente um órgão capaz dos mais discretos milagres, a tristeza transforma-se em alegria, o luto em festa. Muitas vezes foi essa a trama de que se ocupavam as mulheres. Havia avisos contra isto e aquilo, prescrições para que levassem uma vida tão doméstica quanto possível, não exagerando os períodos de tempo entregues a actividades mais ambiciosas, intelectuais, sobretudo que houvesse o cuidado de não serem vistas com a caneta na mão, a redigir missivas demasiado extensas e sem um destinatário óbvio. "Pode-se saber tudo e, no fundo, recusar aceitar que a aniquilação das mulheres é a fonte de sentido e de identidade dos homens. Pode-se saber tudo e ainda assim querer desesperadamente não saber nada, porque enfrentar o que sabemos é questionar se a vida vale alguma coisa", escreve Andrea Dworkin. Não podemos substituir-nos, mas podemos ler-nos em voz alta, descrever os ritmos, os tons, o enredo ao nosso redor. As diferentes formas de pornografia, o seu elemento comum... "Há uma mensagem básica e transversal a todos os tipos de pornografia, desde o esterco que nos atiram à cara, até à pornografia artística, o tipo de pornografia que os intelectuais classificam como erostismo, passando pela pornografia infantil de baixo calão, e as revistas de 'entretenimento' masculino. A única mensagem que é transmitida em toda a pornografia a toda a hora é esta: ela quer; ela quer ser espancada; ela quer ser forçada; ela quer ser violada; ela quer ser brutalizada; ela quer ser magoada, ela quer ser ferida. Esta é a premissa, o elemento principal, de toda a pornografia. Ela quer que lhe façam estas coisas desprezíveis. Ela gosta. Ela gosta. Ela gosta de ser atingida e gosta de ser magoada e gosta de ser forçada." Como dela não há nada publicado entre nós, vale bem a pena dar-lhe alguma folga nesta língua: "Os pornógrafos, modernos e antigos, visuais e literários, vulgares e aristocráticos, apresentam uma proposta consistente: o prazer erótico para os homens deriva da destruição selvagem das mulheres e baseia-se nela. Como o pomógrafo mais honrado do mundo, o Marquês de Sade (apelidado por alguns académicos de 'O Divino Marquês'), escreveu num dos seus momentos mais contidos e bem-comportados: 'Não haveria uma mulher na terra a quem eu desse alguma vez motivo para se queixar dos meus serviços tivesse eu a certeza de a poder matar depois.' A erotização do assassínio é a essência da pornografia, como é a essência da vida. O torturador pode ser um polícia a arrancar as unhas à vítima numa cela de prisão ou um homem dito normal empenhado no projecto de tentar foder uma mulher até à morte. O facto é que o processo de matar (e tanto a violação como a agressão são etapas desse processo) é o principal acto sexual dos homens na realidade e/ou na imaginação. As mulheres, enquanto classe, têm de permanecer em cativeiro, sujeitas à vontade sexual dos homens, porque o conhecimento de um direito imperial de matar, seja ele exercido em toda a sua extensão ou apenas parcialmente, é necessário para alimentar o apetite e o comportamento sexuais. Sem as mulheres como vítimas potenciais ou reais, os homens são, no actual jargão higienizado, “sexualmente disfuncionais”. (...) A coisa mais terrível da pornografia é que ela diz a verdade masculina. A coisa mais insidiosa da pornografia é que ela conta a verdade masculina como se fosse uma verdade universal. Aquelas representações de mulheres acorrentadas a serem torturadas são supostamente representativas das nossas aspirações eróticas mais profundas. E algumas de nós acreditam nisso, não é verdade? O mais importante na pornografia é o facto de os valores nela contidos serem os valores comuns dos homens. Este é o facto crucial que tanto a direita masculina como a esquerda masculina, nas suas formas diferentes mas que se reforçam mutuamente, querem esconder das mulheres. A direita masculina quer esconder a pornografia, e a esquerda masculina quer esconder o seu significado. Ambas querem ter acesso à pornografia para que os homens possam ser encorajados e energizados por ela. Mas, quer vejamos a pornografia ou não, os valores nela expressos são os valores expressos nos actos de violação e de espancamento das mulheres, no sistema legal, na religião, na arte e na literatura, na discriminação económica sistemática contra as mulheres, nas academias moribundas, e pelos bons e sábios e amáveis e iluminados em todos estes campos e áreas. A pornografia não é um género de expressão separado e diferente do resto da vida; é um género de expressão em plena harmonia com qualquer cultura em que floresça. Isto é assim quer seja legal ou ilegal. E, em qualquer dos casos, a pornografia funciona para perpetuar a supremacia masculina e os crimes de violência contra as mulheres porque condiciona, treina, educa e inspira os homens a desprezarem as mulheres, a usarem as mulheres, a magoarem as mulheres. A pornografia existe porque os homens desprezam as mulheres, e os homens desprezam as mulheres em parte porque a pornografia existe." Já aqui fica qualquer coisa, e serve como um bom balanço para a conversa com Maria João Faustino, feminista da linha dura, o que quer apenas dizer que tem já um longo percurso feito no estudo da violência sexual, e está a par, não do discurso cheio de boas intenções, bons sentimentos, mas do que outras antes, igualmente empenhadas, foram escrevendo e manifestando, sempre com risco, sempre pagando o preço, e, além de saber ler os indíces, tem desenvolvido várias das questões que ainda só começam agora a ser tratadas superficialmente na comunicação social, como o tema do consentimento sexual. Além disso, o trabalho crítico pauta-se ainda pela colaboração com associações feministas e de apoio a vítimas e sobreviventes de violência sexual.

Friday Apr 18, 2025
Friday Apr 18, 2025
Já só se pode contar com os brutos para levar isto ou aquilo por diante, seja o que for, uma vez que, pelos seus próprios modos, estão familiarizados com o estrago, e não os tolhe a falta de um nexo óbvio, estão habituados a pegar por onde der, e ajudam-nos a partir do momento em que nos assumimos também como monstros folhetinescos, desses que dão corda a uma intriga qualquer, até porque se nos calamos logo mergulhamos num silêncio predador, assim, repetindo os mesmos tiques, tomamos balanço no que houver, mesmo em semanas como esta em que parece mais fácil apontar aqueles que nos falham, em que vamos de ausência em ausência, e, numa altura em que a terra já vai parecendo escassa para enterrar tantos, fica-nos a sensação de que, deste lado, a própria luz parece arquivada, uma "luz-mortalha", para nos servirmos de uma expressão de Rui Nunes, um dos poucos que continuam a dar com o isqueiro nalgum cano e a transmitir o seu morse exasperado que soa pelo edifício e por trás do solene e displicente papel de parede. Diante do desconchavo de tudo, em vez de milagres, suplicamos por desastres que tomem conta de tudo, engulam a vida, façam um pouco de justiça, dando cabo dos planos a quem tem a arrogância de fazê-los, e que são, na sua maioria, os safardanas responsáveis pelo estado das coisas. Mas voltando a um desses impulsos plagiados, desta vez a partir do Vargas Llosa, já ia sendo altura de um romance arrancar por estas bandas questionando-se em que momento preciso é que Portugal se fodeu de vez, e isto homenageando também o coronel que tantas vezes deu trela a essa indagação, e apontou algumas datas, algumas hipóteses bastante firmes, fazendo-nos espreitar as coisas por uma brecha, ver como se deu cabo de um período de suspensão, de quase irrealidade e sonho, que se viveu por aqui durante uns quantos meses, tendo sido talvez a última possibilidade antes de sermos engolidos pela vertigem. Alguém nos avisou: "Quando o tempo for apenas velocidade, instantaneidade e simultaneidade, e quando o temporal, entendido como esse acontecer histórico, houver desaparecido da existência de todos os povos, então, precisamente, as perguntas: para quê? para onde? e depois?, começarão a assombrar-nos como fantasmas"... E aí está, "esse motor de aceleração que comprime séculos em segundos", escreve Rui Nunes. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, proclamava Valéry naquele célebre texto sobre a “crise do espírito” no final da Primeira Guerra, e agora o que nos diz o escritor português é que a ruína se tornou o próprio material de construção deste tempo, adiantando que a ruína exprime hoje a intimidade das civilizações. De resto, à volta, por toda a parte, ouve-se um zumbido e vêem-se as luzes dos monitores ligados, sente-se essa fetidez constante "do silencioso arquivo dos computadores, essa vala comum da modernidade". Por estes dias são as nossas próprias consciências que já arrastam e fazem alastrar esse mesmo sinal doentio, essa condenação que trazemos misturada no hálito. "Os noticiários tornam-se tão poderosos que já não precisam de televisão nem de jornais. Existem na percepção das pessoas. Elas próprias inventam as notícias, suficientemente poderosas para parecerem genuínas. São os noticiários sem os media", escreve DeLillo. Mas se não podemos sentir um verdadeiro ânimo, podemos ter vergonha de termos também caído nisto, e assim vimos pedir muitíssimas desculpas, e então damo-nos conta do motivo porque fazemos isto, porque insistimos em pôr uma frase à frente da outra, ultrapassando o desgosto, buscando o que vem depois, e desde logo também porque, como vincava Georges Perec nas últimas linhas de um dos seus livros… “Escrever: tratar de reter algo meticulosamente, de conseguir que algo sobreviva: arrancar umas migalhas precisas ao vazio que se escava continuamente, deixar nalgum lugar um sulco, um rastro, uma marca ou alguns sinais.” Aqui está o motivo por que quando não se tem mais nada ao menos podemos virar-nos para os nossos fantasmas, que não nos deixam falar sozinhos.

Thursday Apr 10, 2025
Thursday Apr 10, 2025
O homem não se reproduz numa grande gargalhada, e é pena. Daria outro sentido às coisas, e seria já por si uma filosofia de impulso quando as coisas não parecem ser capazes de rastejar mais baixo. Já se sabe que os chefes de família em nada acreditam, mas que grande fé colocam no seu cinismo. A situação da nossa fragmentada e precária civilização é cada vez mais grave, lê-se em toda a parte. E as luzes que ainda nos restam parecem cada vez mais íngremes. Todo este desgaste, estes milhões diariamente condenados à frustração, deve ser aqui o limbo. Mas se todos os desertos são falsos, este também o será. Fitamos o dorso dos livros que se arquejam, buscamos passagens, e nisto estamos próximos de tantos que se dedicaram a viciar a lógica, deturpar os estilos, misturar os séculos, suprimir as escolas. No fundo, e pelos fundos, nascem esses magos da quinquilharia, capazes de extrair alguma múmia de uma serapilheira. O pó é comum, as imagens é que se admiram da imensidão dos seus usos. Resta-nos a amizade que se tece de forma estreita com os que já não estão, com um Santos Fernando, com um Giorgio Manganelli, que nos deixava esta senha pessoal: "Amo a companhia, entre todas discretíssima, dos mortos." Aprendemos a trocar as posses pelas possessões. O som da nossa voz parece-se mais com uma cicatriz. "À medida que a civilização caminha para o seu zénite, ou para o seu zero absoluto, avançamos na técnica, renovamos as artes, modernizamos os hábitos e reajustamos os mobiliários, tendemos simultâneamente para o passado, enfeudados a um chiquismo, a uma presunção, recheando o lar progressivo de móveis carunchosos. Mais do que se faz com os vinhos, a divisa é envelhecer as peças. A pátina vence, a porcaria prevalece. Dão-se tiros com a arma caçadeira em escrivaninhas de embutidos. Pintam-se tábuas podres ao domingo, para que pareçam obras do tempo dos Descobrimentos. Tudo très ancien. É moda ter coisas velhas", anota Santos Fernando. faz parte desta natureza de náufragos temporais, coleccionadores diluvianos. Há muito que uns tantos, não vendo forma de dar um jeito a isto, foram conspirando no sentido mais limitado de se porem à margem, tornando-se especialistas da simulação, compendiadores de pequenos males, com a sua capacidade de empunharem a doença, tornaram-se os seus subtis artífices. Compendiam-nas, submetem-se aos efeitos, e deram-se conta de que era um dos talentos mais úteis, essas doenças que se pode aprimorar e que substituem vantajosamente outros géneros, desde a balada ao soneto, ou mesmo a epopeia, para não falar do poema sem pés nem cabeças que hoje se usa, entre outros registos igualmente caducos. E, assim, alguns levaram adiante as suas investigações, desde que alguém se perguntou: "Com a ajuda de que artifícios encontraríamos a força da ilusão para irmos à procura de outra vida, de uma vida nova?" Agora que excisaram o futuro de entre as ambições e os territórios batidos pelos literatos, estes mergulharam nesses cemitérios subterrâneos das espécies desaparecidas, e os melhores escrevem como os primeiros inventores da arte, na parede das cavernas, a palma das suas mãos como uma cintilante extensão de sóis. Assim, a linguagem recupera alguma da sua força de murmúrio, esse apelo doloroso de quem, à noite, por uma nesga qualquer se põe a medir distâncias entre as estrelas. A poesia estaria mais próxima desses gestos, uma vez que imita "uma realidade da qual o nosso mundo possui apenas a intuição" (Cocteau). Neste episódio, depois de tanta insistência, fomos enfim visitados pelo Vasco Santos, pelo menos por um deles, uma vez que o verdadeiro é um ser que paira como uma nuvem e se ligou há muito à descontinuidade essencial do tempo. Um ser esquivo, que habita o vai-vem, mas comparece sobretudo para ver essas ilhas que passam desligadas da corrente, como navios, mas muito mais vastos, sendo um devoto desses rigores ébrios, da delicada interdependência dos homens, quando o pasmo lhes desacelera os impulsos, e captam essas longas e sacras noites perfumadas que passam devagar, suaves como sonhos. Ao longo dos anos tem-se persignado em alimentar o contacto mútuo, astuto, absorvidamente crítico, animoso, alimentando um microcosmos da comunhão, sendo ele mesmo um sobrevivente dessas outras aspirações, um exemplo vivo e real desse alto objectivo que antes era próprio dos seres com alguma capacidade de êxtase.

Friday Apr 04, 2025
Friday Apr 04, 2025
“Quero conhecer a puta./ A puta da cidade. A única./ A fornecedora./ Na rua de Baixo/ Onde é proibido passar./ Onde o ar é vidro ardendo/ E labaredas torram a língua/ De quem disser: Eu quero/ A puta/ Quero a puta quero a puta.// Ela arreganha dentes largos/ De longe. Na mata do cabelo/ Se abre toda, chupante/ Boca de mina amanteigada/ Quente. A puta quente.// É preciso crescer/ esta noite inteira sem parar (…)” Não é uma provocação, é Drummond de Andrade, o mais canalha dos anjos, o mais encarnado dessa hierarquia que se some pelo tecto da criação, o homem que envelheceu ainda de mochila às costas, indo sem querer para a escola, levando porrada no recreio, pedindo namoro à facção do outro lado, resumindo séculos de engate em bilhetinhos, que terminavam em escolha múltipla: “Sim”, “Não” ou “A gente logo vê”. Não estamos a querer simplificar, mas o fracasso amoroso implica ir batendo às portas, ir descendo, até ganhar coragem de atravessar a rua de baixo, onde nos cruzamos com essa “guardiã do limiar”, a prostituta que, segundo Benjamin, é essa figura sagrada e profana ao mesmo tempo, que guarda a passagem entre a cidade diurna e nocturna, entre o alto e o baixo. Hoje, só a vertigem ainda nos desperta. Por isso, dos anjos tudo o que nos resta é a queda, o desastre cumprido de forma ritual, que implica assumir uma escolha, muitas vezes a pior possível, até para não se entregar ao impasse como parece ser a regra entre os demais. Conhecem-se as delícias de não pensar, de não prever e acatar as obscuras transformações que devem fazer de nós homens novos, purificados, os nativos que invocam esse mundo novo, dissociado da realidade, fazendo por esquecer os cruzamentos da história e da cultura, emprestados a esse imenso coral eufórico, a uma sujeição constante da actividade individual aos imperativos da virtualidade. “O espaço social transformou-se num sistema mundial de ligações automáticas em que os indivíduos não podem experimentar a conjunção, mas apenas a ligação funcional. (…) A vida social prossegue, mais frenética do que nunca: o organismo vivo e consciente deixa-se invadir por funções matemáticas mortas e inconscientes”, vinca Franco ‘Bifo’ Berardi. Há hoje uma docilidade a um futuro que renunciamos a forjar e que nos limitamos a augurar, e mesmo se contrariados, colaboramos, dominados por desejos narcísicos e impulsos manipulados. Ninguém encontra saída, mas afundamo-nos e temos cada vez mais dificuldade em estabelecer uma fronteira entre o que pensamos ou sentimos e aquilo que não passa de uma resposta induzida a uma cadeia insuperável de estímulos, a um regime de programação dos circuitos neuronais. Não nos reconhecemos uns nos outros, mas falamos a mesma língua quando exprimimos este intenso mal-estar. “Este clima de asfixia que impregna os pulmões/ de uma angústia ofegante de peixe recém-pescado”, escreve Oliverio Girondo. “Este fedor aderente e errabundo,/ que intoxica a vida,/ e nos some em viscosos pesadelos de lodo./ Este miasma corrupto,/ que insufla em nossos poros/ apetites de polvo,/ desejos de um parasita abjecto,/ não surge,/ não surgiu/ destes aglomerados de sórdida hemoglobina,/ cal viva,/ soda cáustica,/ hidrogénio,/ chichi úrico/ que infectam os colchões,/ os tectos,/ as veredas,/ com suas almas cariadas,/ com seus gestos leprosos./ Este olor homicida,/ rasteiro,/ inelutável,/ brota de outras raízes,/ arranca de outras fontes./ Através de anos mortos,/ de crepúsculos com ranço,/ de sepulcros gasosos,/ de cursos subterrâneos de rios,/ foi-se aglutinando com os sucos pestíferos/ os detritos hediondos,/ as corrosivas vísceras,/ as esquírolas pútridas que consentiram o crime,/ a idiotice purulenta,/ a iniquidade sem sexo,/ o gangrenoso engano;/ até surgir o ar,/ expandir-se no vento/ e tornar-se corpóreo;/ para abrir as janelas/ penetrar nos quartos/ agarrar-nos pela nuca,/ empurrar-nos para o nojo,/ enquanto grita seu contágio,/ sua aversão,/ seu desprezo,/ por tudo o que aquieta a aspereza das horas,/ por tudo o que alivia a angústia dos dias.” Neste episódio vamos falar da polémica que opôs Madalena Sá Fernandes a João Pedro George, vamos tentar abordar os elementos de uma sanha acicatada em zonas onde se excitam os piores instintos, onde os enredos estão sempre previstos, e oferecem esse jogo em que, sem se apagar a luz, a condição dos números permite essa degradação de todo o discurso, uma exasperação dos elementos conflituantes, mas num grau tal de tensão que se suprime qualquer possibilidade de juízo crítico. “Outrora ainda se fingia respeitar a inteligência, a cultura, as atitudes cívicas e morais”, assinalava num texto já com um quarto de século José Miguel Silva. “Ninguém se atrevia a desdenhar publicamente a cultura ou a ideia de formação intelectual. Havia decerto nisso uma grande dose de hipocrisia. Mas a hipocrisia não é o mais baixo a que se pode descer: pelo menos revela ainda má consciência em relação a algo que no fundo (ainda que de forma meramente supersticiosa) se considera superior: os valores morais, a ideia de justiça, a honorabilidade da inteligência. Quando já nem hipocrisia existe, isso significa que só resta o cinismo. E o cinismo reside na constatação de que o sucesso mundano em nada depende da inteligência e da probidade, e no regozijo perante esse facto, que assume então visos de ‘libertador’.” Neste episódio convocámos a Maria Lis para uma tarefa bastante ingrata como ela nos levou a compreender ao longo desta discussão, explicando os motivos por que a possibilidade de transmitir verdadeiramente certas noções obrigaria a uma transformação tão profunda da condição daquele que escuta, que não teria apenas de o fazer com verdadeira disposição de se reconhecer nesse “outro” que é “a mulher”, mas admitir, ainda que momentaneamente, uma transfiguração profunda dos processos pelos quais nos comunicamos, deixando de lado a mera apreensão racional, para assumir uma verdadeira experiência dessa outra realidade, que, parecendo estar tão próxima, reside num pólo que em grande medida ainda nos é desconhecido.

Friday Mar 28, 2025
Friday Mar 28, 2025
Este tipo masturba-se à sombra de uma árvore de que não sabe o nome, é espiado também desde um ninho qualquer por pássaros sem uma espécie que pudesse distinguir das demais, tem diante de si uns quantos cadáveres, rostos familiares dos filmes, das revistas, corpos que a sua fantasia se entretém a compor e decompor, enquanto procura um ângulo que o satisfaça. Em tempos escrevia umas coisas, foi publicado, tinha boas relações, e não demorou a ver-se como uma pequena vedeta no circuito, mas em breve já lhe parecia que arrastava o seu caixão atrás de si, pelas conversas que tinha, o tipo de preocupações e ansiedades que eram tão comuns, isto naquele país de fechaduras complicadas, com um trajecto que se perde por ali, enquanto tudo enferruja, entre os que tentavam garantir-se e construir a sua zona de privilégio. Cansou-se daquela correria, começando a preferir as páginas dos eruditos, tentando passar à clandestinidade, e, se possível, integrar o grupo dos escritores mais atacados pelos colegas, preparados para divisar, nas florestas dos textos, a sombra ominosa do deus a quem pretendiam barrar o caminho. Dedicou-se a períodos de ausência, cultivou os mistérios, mas já se sabe como é só por breve tempo que suporta o homem a plenitude divina, e voltou-lhe a apetecer que todos tivessem notícia dele. Acontece que, entretanto, se habituara a registar os devaneios, e por mais que se esforçasse não conseguia ele mesmo fazer sentido daquilo que se lhe impunha, acabando sempre as suas derivas ou divagações por se extinguirem demasiado cedo. Como se a escrita o recusasse. Virou-se para os versos, naturalmente. Passou a dormir no tal caixão. “Está-se bem no teu caixão de aço, poeta./ De que é que te escondes. Tens medo dos versos./ Não te preocupes. Ao menos não mentem./ Fazem o trabalho deles como a gente faz o nosso./ E talvez tivesses amor a mais por ti próprio/ E pelo teu trabalho. Eu cá trabalho por dinheiro./ O meu prazer é depois do trabalho, cerveja e mulheres./ Agora trata-se de esquecer o que representavas para eles/ Para cada um deles, poeta. A morte paga a pronto.” Andava cheio de vozes, não sabia onde começava ele ou uns versos de Heiner Müller como esses aí em cima. Dizia a quem estivesse disposto a aturá-lo que andava a semear fantasmas, fingia-se bêbado, meio louco, sempre num transe marado, vagabundo e sei lá que mais, pedia dinheiro para comprar palavras, tinha uma tabela, preços, e de tanto as medir começou a usá-las para fins maliciosos, andava por aí já podre de inimigos, aparecendo à porta duns e dumas, arranjando problemas, fazendo ameaças, deixava-lhes cartas que exibiam um grau de paciência demoníaca, recortando frases, às vezes palavras ou até letras das revistas, já se dizia um fabricante de trovões, em vez de livros queria submergir a cidade numa imensa tempestade… “Mas de mim eles vão dizer Ele/ Fez propostas Não as/ aceitámos. Porque é que havíamos de o fazer./ É isto que deve ficar escrito na minha sepultura e/ Que os pássaros lhe caguem em cima e/ Que as ervas cresçam no meu nome/ Escrito na pedra Por todos/ Quero ser esquecido um rastro na areia.” Mas antes disso, podia despedir-se, armar um estardalhaço como aquela cidade não supunha já que fosse possível de um literato, mesmo um proscrito. Havia de regressar aos jornais do inimigo, uma última vez, antes que fosse tão má ideia nomeá-lo como noticiar suicídios. “Para quem escrevemos/ Senão para os mortos omniscientes no pó”… A imortalidade começava então a parecer-lhe um castigo que não se deve desejar a ninguém. Passou a acreditar que os verdadeiros poetas fazem de tudo para ser esquecidos, para cercar de nojo mesmo os seus mais delirantemente belos tumultos juvenis, e pela aspereza, por confidências venenosas, compram os seus versos mais delicados de volta, garantindo que a sua divina rudeza os torna insuportáveis para a memória dos que só querem encher mais não sei quantas páginas com as suas próprias inanidades sonantes. “Porquê escrevê-lo, apenas porque as massas o querem ler?” É sempre música aquilo que mais se ouve nos períodos de acentuado declínio. “Quando já tudo foi dito, as vozes soam doces”, garante Müller. Mas e se ainda nada foi dito, e se há muito tempo ninguém diz nada, não se desencadeiam então esses períodos em que a coisa mais estranha que pode soar nesta terra seja uma voz humana? Não estamos esquecidos dos elementos que implantam dentro de nós a vertigem, antecipando na carne todos os elementos da queda. Os verdadeiros poetas são perseguidos, a sua atenção torna-os atreitos a depararem-se com acidentes em toda a parte, são esses anjos desditosos, caíram tantas vezes que quebraram todos os ossos dentro da cabeça, e só lhes é dado reconhecer em cada detalhe aquilo que se aproxima, o tal desfecho. Neste episódio Rui Nunes veio incitar-nos a abrirmos mão daquilo que já julgamos saber, veio desequilibrar-nos e à arrogância com que disputamos as ficções do mundo conhecido, para nos devolver à sua outra face, a do desconhecido. Veio lembrar-nos da força do desamparo, do desinteresse pelas tenebrosas sequências ou consequências de uma urdidura que nos precede e sufoca desde sempre. Ele diria apenas: “volto ao trabalho de escrever a deserção, embora me não doa como antigamente (…) lutar com as palavras, progredir/ pelo interior desta guerra até chegar/ à palavra única da perda, esmagá-la/ contra mim, obrigar-me a dizer/ o seu corpo dizimado./ O caos/ Os cacos”.

Friday Mar 21, 2025
Friday Mar 21, 2025
Não deveria haver coisa mais suja do que isso de pôr-se a escrever sem um fim claro, ir acerbilhando as frases de modo a gerar um grau qualquer de irrazoabilidade, uma relação suspeita, cujos esforços se tornam um motivo de perturbação à volta. “Começo a escrever. E quando o faço nada de bom se passa já no meu íntimo”, anota Santos Fernando. Na verdade, é essa a inflexão decisiva de uma escrita, quando nos damos conta de que não vem orientada por nenhum princípio edificante, ela impõe-se e nada de bom dali se pode esperar. E tudo nela se torna inquietante, desde logo um certo estilo híbrido, como um estranho ser cuja pele apenas transmitisse reflexos subtilmente distorcidos, e a sua superfície fosse ao mesmo tempo uma espécie de estômago, emaranhando a envolvência numa digestão laborosíssima, e fazendo o seu percurso, despedaçando com um humor algo cáustico tudo aquilo com que se cruza. Passou demasiado tempo desde que uma predisposição artística denunciava uma gente que se entregava a uma errância selvagem, figuras um tanto dissolutas, cujos modos se tornam raros, os gestos um tanto indecorosos, produzindo espontaneamente um cenário de clandestinidade ao seu redor. “Considero que a arte reflecte a moral e que não se pode renová-la sem levar uma vida perigosa e dando azo à mendicância”, escreve Jean Cocteau. Nenhum verdadeiro artista parte para a obra com um desejo de atingir a clareza. Desejáveis são as trevas. E não é uma questão de ser difícil, de se mostrar intratável, mas é a compreensão de que aquilo que nos escapa é o que tem para nós verdadeira gravidade e apelo, pois sinaliza esses mundos abolidos e os firmamentos extintos a partir do momento em que a imaginação já não ousa provocar verdadeiros desastres. “Não se trata de olhar sem compreender e de gozar gratuitamente de um charme decorativo”, insiste Cocteau. “Trata-se de pagar caro e de compreender com um sentido especial: o sentido do maravilhoso.” É preciso considerar o elemento pavoroso de uma ponderação que realmente se mostra disposta a suspender os valores que tomamos como essenciais. A partir de um certo ponto todo o verdadeiro pensamento deve provocar calafrios a quem se esforce por acompanhá-lo. Existe também a utilidade desses crimes que premeditamos longamente mesmo sem fazermos realmente tenção de os levar a cabo, mas apenas para gozar do elemento sinistro, e confessar-se, criando um nível de intimidade e partilha inesperados ao exprimir um ânimo vingativo, admitindo a dimensão de pavor dos desejos que formulamos com aquele gozo de um ser em sentir-se a retorcer, os tais desejos impossíveis por reconhecermos neles um excesso de consequências. Mas, sendo a vida aquilo que é, as fantasias tendem a ir enegrecendo, a assumir um teor cada vez mais perverso. E talvez não falte muito para que a arte não se possa já distinguir de uma conduta criminosa. “Noutros tempos, cheguei, por vezes a interrogar-me por que motivo os santos queriam tanto infligir a si próprios tormentos corporais”, escreve Rilke… “só agora compreendo que esse gosto do sofrimento até ao martírio era uma manifestação da urgência, da impaciência de não mais voltarem a ser interrompidos, nem incomodados, inclusivamente pelo que lhes poderia acontecer de pior. Tenho dias em que não aguento ver pessoas, com medo de que rebente nelas uma dor capaz de lhes arrancar gritos, tão forte é a minha angústia de que o corpo, como frequentemente acontece, abuse da alma, que nos animais encontra o seu repouso, mas a segurança só nos anjos a pode encontrar.” Esta segunda parte já não combina com estes dias sobre os quais atiramos ingenuamente pronomes possessivos. Na verdade, parece que em muitos casos aquilo que é preciso é abusar das almas, castigar os corpos o suficiente para que a matéria volte a reunir-se em torno de algum eixo. Entrámos por um caminho que aponta sempre na mesma direcção, e vai ao sabor democrático do baratuncho, assim os próprios poetas são coagidos a darem explicações e a balizarem os seus projectos ainda antes de se lançarem nas investigações que, idealmente, deveriam virar-lhes a vida do avesso, trucidando cada uma das expectativas que traziam. “As pessoas exigem que se lhes explique a poesia”, anota Cocteau. “Não sabem que a poesia é um mundo fechado que recebe muito pouca gente, e que chega mesmo a não receber ninguém.” Anda tudo tão conveniente, mas depois estamos todos fartos, ou apenas entretidos, distraídos, e assim. Idealmente as obras deveriam ser elas mesmas os inimigos daqueles que se viram obrigados a empenhar tudo para as arrancar de entre as partes mais vulneráveis da matéria e de si mesmos. Ora, este episódio cedo se lançou na investigação do descalabro, e convidámos uma especialista, instigadora desses acessos desejantes, alguém a quem parece animar a irresolução de quem não se revê na sua própria condição, alimentando-se da suspeita de que há muita coisa por aqui que não bate certo. Patrícia Portela aliou-se a nós neste esforço de traduzir toda a urgência e crueldade nas piores injúrias de forma a, pelo menos, causarmos alguma comichão que leve a coçar-se este tempo de calmaria podre mesmo estando o abismo em saldos.

Friday Mar 14, 2025
Friday Mar 14, 2025
"A poesia é onde tudo acontece”, escreveu Alejandra Pizarnik. E adiantou que dizer “liberdade” e “verdade” em referência ao mundo em que vivemos (ou não vivemos) é dizer uma mentira. “Só não é mentira quando se atribui estas palavras à poesia: o lugar onde tudo é possível.” Mas há muito que deixou de ser assim entre nós. Por cá a poesia é o lugar onde nada acontece, e são realmente muito poucos aqueles que declaradamente assumem a poesia como fala da insubmissão, e que através dela manifestam desprezo pelas formas do poder. Por essa razão, como já alguns fizeram questão de sublinhar, a poesia deve ser feita contra a poesia, e contra essa noção que hoje se vai tendo do poeta como personagem que se dá ares precisamente para esconder que nada tem a dizer, “e que por isso verseja, com vista a produzir um efeito, um prestígio que influa positivamente nas hierarquias do poder e do dinheiro” (Júlio Henriques). Começa a ser difícil perceber em que momento é que a poesia escapa a ser um desses discursos acomodatícios, alimentando o álibi cultural daqueles que gostam de ser vistos a patrocinar as artes e ver-se cercados dessas criações de estufa. Já a propósito das publicações colectivas que se têm generalizado nos nossos dias, desses almanaques ou antologias sempre a fim do regime celebratório, à boleia de comemorações e efemérides, Alfonso Berardinelli falava na importância de se impor algum critério de objectividade que rompesse com a tendência dos poetas de hoje para se auto-consolarem no seu pequeno gueto, onde nada nem ninguém os contradiz. “Os poetas criaram uma zona protegida para si próprios, contentam-se com pouco, esperam pouco de si próprios, são susceptíveis e vaidosos, mas não têm uma verdadeira ambição. Já não têm as grandes ambições que os poetas sempre tiveram – os quais podiam não alcançar grande repercussão, mas contavam com o valor e o poder dos seus versos. A força dos poetas sempre foi esta.” No ambiente desolador que por cá passa por espaço literário, há muito que se confunde o campo de criação literária com o da circulação dos livros, quando essa forma de proliferação apenas sinaliza como o meio editorial se tornou afim da agenda de consumo que nos vai sendo imposta, dissolvendo a perspectiva crítica nesse favor que promove um consenso ideológico e sem margem para os gestos de recusa e de confronto. À semelhança do que aconteceu com a poesia, e com tantas das categorias artísticas, os próprios movimentos de contestação social viram-se subsumidos às retóricas de reprodução de avatares sociais e identidades digitais, num processo que dá primazia às formas de autorrepresentação. Tudo é uma miragem, uma peça de teatro cujo cenário não tem centro, nem corpo ou geografia. Também o feminismo que assume mais visibilidade é cada vez mais uma forma de auto-indulgência, quase um reflexo de ordem narcisista, como nos diz Jessa Crispin. “Eu defino-me como feminista e por isso tudo o que faço é um acto feminista..." Trata-se de um argumento político de tal modo evidente e poderoso, que a melhor forma de o esvaziar passou por cooptá-lo como uma estética e uma forma de merchandising. No seu manifesto feminista – "Why I am not a feminist" –, Crispin vinca que a história do feminismo tem sido marcada por um “pequeno número de mulheres radicais, muitíssimo empenhadas, e que há custa de um enorme sacrifício fizeram avançar a posição das mulheres, normalmente através de actos e palavras chocantes”, sendo que a “maioria das mulheres, embora tenha beneficiado imensamente do desafio e do empenho dessas poucas, tratavam logo que possível de se dissociar delas”. Esta ensaísta norte-americana que recupera e honra as posições da segunda vaga feminista é implacável na denúncia do individualismo e do capitalismo, sistemas de valores que, segundo ela, distorceram totalmente os propósitos e o alcance do feminismo, encorajando as mulheres a pensar no movimento apenas na medida em que este conduz a ganhos individuais. “As últimas duas décadas dessa forma de feminismo enquanto lifestyle levou tantas mulheres a partirem do princípio que a coerência com o feminismo não significa abdicarem nem recusarem-se seja ao que for. Bastava vestirem o rótulo, e nem era justo que se sentissem pressionadas a renunciar ao casamento, à cultura popular misógina, às roupas de fábrica ou às carreiras corporativas para se alinharem com os princípios feministas – e o facto é que muitos dos nossos ‘intelectuais de proa’ feministas se têm dedicado a todas as formas de contorcionismo no sentido de demonstrar como, não só nenhuma destas coisas é anti-feminista, como, na verdade, fortalecem o movimento.” Sara Araújo, a nossa convidada neste episódio, encarna bem esse trabalho árduo e o empenho que é essencial para que seja possível voltar a colocar a tónica no desmantelamento das hierarquias e dos elementos de opressão social que sempre estiveram na mira da crítica feminista. Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra durante quase duas décadas, acabou por cortar com aquela instituição na mesma altura em que vinham a lume as alegações sobre o clima de predação sexual e intimidação ou assédio moral no seio desta. Hoje, é uma das figuras chave no mais significativo acto de insurreição contra as estruturas despóticas que persistem na academia, que, volvidos 50 anos do 25 de Abril, ainda é essa incubadora dos mecanismos de poder e repressão que alimentavam a nossa ditadura tão afeiçoada aos seus pergaminhos catedráticos.